top of page
  • Foto do escritorMatheus

Que gramáticas recomendo.

Atualizado: 4 de dez. de 2023

Em algum momento do nosso curso você vai me perguntar que gramáticas eu recomendo. Ficamos então numa espécie de beco sem saída, pois não há muitas publicadas hoje no Brasil. O aluno fatalmente é levado a comprar alguma edição antiga que pode ou não estar disponível nos sebos, pode ou não custar o olho da cara. E agora?



Felizmente, o método adotado em nossas aulas, o Aprendendo Latim, conta com um resumo gramatical ao fim do livro que é uma verdadeira mão na roda para os alunos que precisam realizar uma consulta rápida. Encontramos ali tabelas morfológicas muito claras e um resumo curto, é verdade, mas relativamente eficaz sobre orações subordinadas.


Não é o ideal para quem está terminando o curso e precisa passar a conviver com textos originais; quebra um galho, mas não mais do que isso. Nesse caso, o melhor que o aluno faz é tentar adquirir uma gramática que lhe servirá como obra de referência, ou seja, aquele livro que você sempre consulta quando tem que resolver de forma rápida e prática uma dúvida. Não precisa ser, necessariamente, a melhor gramática do pedaço; o que conta aqui é o quão acostumado você está em consultar esse livro, como se ele fosse uma espécie de velho amigo. Significa dizer que se a gramática que você tem aí na sua casa for uma das que eu não recomendar neste texto, não é o fim do mundo: primeiro pois isso aqui é apenas minha opinião, dirigida principalmente a quem não tem gramática alguma e quer comprar algo de qualidade e que caiba no orçamento, e segundo pois o que importa no fim das contas é o bom uso que você faz das ferramentas que tem.


Em muitos casos, pode ser que sua dúvida, a depender da curiosidade com que você trate o tema, crie asas e vá dar longe. É hora então de consultar trabalhos mais avançados, por exemplo ensaios, artigos acadêmicos, dissertações, teses, livros específicos sobre o tema. Adentramos, cada vez mais, no reino dos estudos acadêmicos em latim, quando as respostas são substituídas por perguntas e hipóteses. Desnecessário dizer que, num estágio assim, não será em uma gramática específica que você encontrará a resposta almejada. Pode ser que você mesmo precise postular uma!


 

Minhas recomendações serão voltadas a gramáticas do latim clássico; trabalhos sobre latim medieval ou botânico, por exemplo, estão fora da minha alçada. Mas isso acaba que não muda muita coisa pois estamos em escassez de gramáticas latinas de um modo geral. A mais recente em língua portuguesa, escrita pelo classicista e tradutor português Frederico Lourenço, infelizmente está muito distante da realidade de um país de moeda desvalorizada. É uma pena, já que os comentários do autor, em especial sobre morfologia, são bem cuidados, esclarecedores e instigantes. Mas, como importar um livro é algo muito distante da realidade da maioria dos alunos, não faria sentido que eu desse uma sugestão dessas para meu aluno e o deixasse a ver navios. Quem me pede uma sugestão, me pede uma que seja acessível. Responder assim, compre do exterior!, seria no mínimo uma grosseria.


(P.S. 20/10/22: Para meu alívio, a gramática de Frederico Lourenço foi publicada há pouco no Brasil pela editora Kírion.)


A única gramática latina brasileira recente de que tenho notícia é uma reedição da do padre João Ravizza, publicada na década de 40. Serve bem a quem precisa de uma gramática para consultas simples - mas nada muito além disso. Quando vista mais de perto, encontramos ali um latinista conservador para quem, por exemplo, o latim vulgar foi um legítimo vilão da novela das nove: "Infelizmente o desenvolvimento e o aperfeiçoamento da língua latina estendeu-se unicamente às classes cultas, preferindo o vulgo conservar o seu falar rude e inculto, descuidando de procurar ou ao menos acompanhar passivamente o cultivo da língua" (§507). Fico imaginando que tipo de imagem eu passaria para meus alunos adotando uma gramática assim em meus cursos. Pelo jeito, a de alguém que considera o estudo das variedades linguísticas uma baboseira ou no mínimo uma excentricidade.


Os problemas não acabam aí. O indoeuropeu somente dá as caras no livro quando o autor explica a história do latim (§498 e seguintes). Só. Ele não é mencionado em qualquer outra parte. Virou, literalmente, um apêndice. O que dizer de uma gramática assim? Veja que não estamos falando de uma gramática escrita no século XVIII, quando não se fazia de modo sistemático essa conexão entre latim e outros idiomas antigos, ou entre as línguas neolatinas e o latim vulgar. Estamos falando de uma gramática escrita após um século inteiro de descobertas e formulações importantíssimas sobre o tema. E o pior é que não se trata de um problema exclusivo dessa obra. Quem abre outras gramáticas escolares tais como a de Napoleão Mendes de Almeida, especialmente famosa entre os conservadores, também não encontra menção nenhuma ao indoeuropeu. Então voltamos à pergunta: qual a pertinência de um trabalho sobre latim que não fale das origens do latim? Que trate o tema como um apêndice? Certamente, o mesmo valor de uma gramática do português que queira explicar os fatos do idioma sem investigar suas origens...


Não bastasse, ainda temos um problema ideológico sério com essa reedição. Lemos, no prefácio escrito por Domenico Schmidt, que "É dever nosso, como católicos e como latinistas, defender tal Civilização [cristã e ocidental] pela salvação das almas e para a maior glória de Deus. Como alternativa ao Ocidente existem somente a barbárie pagã, a idolatria e a perversão moral e social." É de uma intolerância no mínimo estarrecedora. Nunca imaginei que, em pleno século XXI, houvesse quem realmente ache que o latim é o leão de chácara da cristandade - latim, minha gente!, a língua em que se escreveu o poema 16 de Catulo, o Satíricon de Petrônio, inscrições obscenas em Pompeia, os Carmina Burana! O que está por trás dessa edição não é apenas uma higiene social proposta por um cristão em cosplay de templário, mas também uma higienização do próprio latim, na medida em que expulsa os corpos indesejáveis do idioma e tenta vender uma imagem idealizada da língua. Paulo Sérgio de Vasconcellos, em resenha sobre a edição, tocou na ferida: "Pessoalmente, perguntamo-nos como poderíamos indicar a nossos alunos de Latim uma edição (de resto, como dissemos, editorialmente bem feita), que traz em suas primeiras páginas uma ideologia tão danosa à imagem da área?" Mais até do que danosa à área, com que cara eu recomendaria uma gramática dessas a alunos gays, muçulmanos, quilombolas, indígenas?


 

Deixando de lado, portanto, trabalhos medianos incensados por razões puramente ideológicas, um ponto fora da curva é a Gramática Superior da Língua Latina de Ernesto Faria (leia-se: uma gramática para o nível superior), publicada em meados do século passado, pouco mais de dez anos após as de Ravizza e Napoleão. Não só é uma gramática escrita por um dos melhores latinistas que o Brasil já teve, como também é um trabalho feito por quem estava atualizado com as discussões mais recentes no campo da morfologia e sintaxe latinas feitas naquele tempo, algo, desnecessário dizer, ausente na maioria dos trabalhos tradicionais mencionados antes. Nela, sim, encontramos o indoeuropeu como ferramenta de pesquisa e reflexão, devidamente incorporado às explicações sobre fatos morfológicos do idioma. Não menos importante é a Gramática do latim vulgar de Theodoro Maurer Jr., obra incontornável para muitos filólogos ainda hoje. As duas foram publicadas em uma excelente coleção da época, a Biblioteca Brasileira de Filologia, que contava com diversos outros títulos importantes tais como a Iniciação à Lírica Trovadoresca de Segismundo Spina, a Gramática Histórica de Ismael Coutinho e a Estilística da Língua Portuguesa de Rodrigues Lapa.


Pode ser que o leitor ache estranho que eu compare gramáticas originalmente voltadas a níveis básicas do ensino de décadas atrás, como eram as de Ravizza e Napoleão, com gramáticas pensadas para o ensino superior, como são as de Ernesto Faria e Maurer Jr. No entanto, quando se folheia a Síntese de Gramática Latina de Ernesto Faria, publicada na mesma época que as de Ravizza e Napoleão, e voltada ao mesmo público, encontramos ali um trabalho sério e atualizado que não trata o indoeuropeu ou o latim vulgar como apêndices, mas, pelo contrário, os incorpora às explicações. É material feito por quem trata o aluno como um ser pensante que tem plena capacidade de dominar assuntos mais requintados e esclarecedores.


De lá pra cá nós não publicamos trabalhos capazes de rivalizar com esses. É uma pena, pois o próprio espírito científico que norteou empreendimentos assim merecia a publicação de novas obras que avançassem na exposição e trouxessem informações mais atualizadas, à luz de pesquisas recentes. Se Ernesto Faria pôde consultar trabalhos importantes como a sintaxe latina de Ernout e Thomas, a morfologia história de Meillet e o dicionário etimológico de Ernout e Meillet, hoje contamos com trabalhos mais atualizados em todos esses níveis, por exemplo os dois volumes da sintaxe de Harm Pinkster, a morfologia comparada de Michael Weiss e o dicionário etimológico de Michiel de Vaan. E isso para não mencionar dicionários importantes tais como o Oxford ou os avanços realizados na redação do Thesaurus.


O problema, porém, é que indicar para o aluno obras dessa coleção fatalmente o levará a desembolsar quantias vultuosas em visitas periódicas a sebos. Para remediar esse problema, costumo sugerir ao aluno um combo que, em alguma medida, serve como uma espécie de minigramática latina muito eficiente. Dúvidas sobre morfologia podem ser sanadas consultando o excelente Iniciação ao latim de Zélia de Almeida Cardoso, claro em suas explicações e tabelas, mas também ligeiramente aprofundado e didático ao explicar os porquês dos morfemas. Já dúvidas sobre orações subordinadas podem ser estudadas através do A sintaxe do período subordinado latino, de Paulo Sérgio de Vasconcellos, uma obra de referência sem igual no Brasil e capaz de rivalizar com qualquer outra publicada lá fora.


Dois livros bem embasados, sérios, baratos, fáceis de encontrar e que, juntos, poderão servir como material de referência para áreas que costumam gerar muitas dúvidas nos alunos. Não cobrem, naturalmente, toda uma gramática latina, afinal de contas ainda ficam faltando muitas outras explicações sobre fonologia e sintaxe da oração simples, em especial a dos casos. O que o aluno pode fazer nessa situação é montar, ele próprio, um material de referência com base nas explicações dadas pelo método e em sala de aula, complementando com lições de gramáticas antigas encontráveis na internet, até onde, claro, elas forem de alguma ajuda.


Supondo que o aluno consiga ler pelo menos em inglês e tenha dinheiro para importar livros, ou então acesso a uma biblioteca bem equipada o bastante, alguns trabalhos importantes, além dos já citados acima, são The Blackwell History of the Latin Language, de James Clackson e Geoffrey Horrocks, A Companion to the Latin Language, organizado por James Clackson e com contribuições importantes sobre temas diversos, Latin: a linguistic introduction, de Renato Oniga, a série New Perspectives on Historical Latin Syntax, organizada por Philip Baldi (seu The Foundations of Latin é também uma ótima leitura), e os dois volumes da recente Sintaxis latina, organizada por José Miguel Baños Baños. A partir da bibliografia desses livros, o leitor pode ir se aventurando em outros tópicos de seu interesse.


 

Além de recomendações de gramáticas latinas, o aluno sempre me pede algo a respeito de língua portuguesa. Muitas vezes o aluno faz a pergunta esperando uma recomendação de viés tradicional, algo que lhe faça dominar com mais segurança a norma-padrão e depender menos do corretor automático. Se o aluno realmente estiver precisando de uma para se sair bem numa entrevista, preparar uma aula, redigir um trabalho acadêmico, causar uma boa impressão ou estudar para algum concurso, então ele pode, por exemplo, assistir a vídeos gravados na internet por professores de português de Ensino Médio, treinar bastante por meio de exercícios e consultar trabalhos como o de Evanildo Bechara (não apenas sua gramática, mas também suas Lições de português pela análise sintática) e Amini Boainain Hauy, para ficar apenas com dois dos mais completos sobre o tema. Caso, porém, o aluno não precise da norma-padrão para alguma finalidade imediatamente prática, não vejo por que me limitar a sugerir apenas esse tipo de trabalho.


Compensa muito mais instigar o aluno a desenvolver uma mentalidade investigativa e científica sobre línguas, uma que se preocupe menos com os conceitos consagrados pela tradição e passe a questionar a pertinência das categorias que estão sendo ensinadas. Um trabalho extraordinário nessa linha é o de Mário Perini em sua Gramática descritiva do português brasileiro, uma verdadeira aula de como pensar criticamente um idioma. Não menos importantes, mas que requerem do aluno uma formação mais sólida, são a Gramática de usos do português de Maria Helena de Moura Neves, a Nova gramática do português brasileiro de Ataliba Castilho e a Gramática pedagógica do português brasileiro de Marcos Bagno, obras que foram muito importantes na minha formação. Caso o aluno não consiga adquirir a versão completa dos dois últimos, as versões menores, de bolso, Pequena gramática do português brasileiro e Gramática de bolso do português brasileiro, cumprem muito bem seu papel. Agora se ele quiser se aprofundar ainda mais, as coleções Gramática do português culto falado no Brasil e História do português brasileiro lhe darão algumas das perspectivas mais recentes sobre o tema.


O aluno também irá se beneficiar se puder estudar de modo crítico e livre de preconceitos a história do português brasileiro. Muitos dos trabalhos listados acima fazem isso, mas, para sugestões específicas, recomendo a História da língua portuguesa, de Serafim da Silva Neto, a História da língua portuguesa, organizada por Segismundo Spina, esses dois voltados ao português de modo mais amplo, O português brasileiro, de Volker Noll, traduzido por Mário Viaro, a História concisa da língua portuguesa, de Renato Basso e Rodrigo Tadeu Gonçalves, O português da gente, de Rodolfo Ilari e Renato Basso, bem como a História sociopolítica da língua portuguesa, de Carlos Alberto Faraco. Não menos importantes são manuais de filologia como Linguística românica, de Rodolfo Ilari, ou os dois volumes de Elementos de filologia românica, de Bruno Bassetto. Obras mais antigas, como a Gramática histórica da língua portuguesa de Said Ali e a Sintaxe história de Epifânio Dias, valem a pena ser lidas também.

236 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page