GĂȘnero neutro em latim.
- Matheus
- 22 de mai. de 2022
- 8 min de leitura
Atualizado: 7 de dez. de 2023
A grande pauta do momento Ă© a proposta de criar um novo gĂȘnero gramatical para as palavras em portuguĂȘs. NĂŁo hĂĄ um consenso sobre como esse gĂȘnero deve ser; lembro de uma Ă©poca em que as pessoas usavam um x ou um @, como em "alunx" e "alun@s", para conviver ao lado do nosso velho conhecido "aluno(a)", mas de uns tempos pra cĂĄ tenho visto muita gente usar um -e como em "alunes", o que parece ser pelo menos mais fĂĄcil de ser vocalizado. O termo que pegou Ă© "linguagem neutra", mas, como bem destacado por Maria Helena de Moura Neves, trata-se de um termo equivocado: "Na verdade, esse movimento visa a inclusĂŁo social, sem discriminaçÔes, de todos os grupos da sociedade, tratando-se, pois, da proposta de uma 'linguagem inclusiva', ou 'lĂngua inclusiva', o que Ă© extremamente louvĂĄvel".
Cunhar um novo gĂȘnero gramatical Ă© a proposta mais ousada, mas existem formas menos impactantes de desenvolver uma linguagem inclusiva que minimize ruĂdos indesejĂĄveis. Marcos Paula Santos (2019, p. 39 e seguintes) estudou algumas em sua dissertação de mestrado, por exemplo a substituição de "homem" por "humano, pessoa, indivĂduo". Evanildo Bechara (2001, p. 134) tambĂ©m observou que muitas profissĂ”es passaram a criar formas femininas para acompanhar "a presença, cada vez mais justamente acentuada, da mulher nas atividades profissionais que atĂ© bem pouco eram exclusivas ou quase exclusivas do homem". Ă o que levou Ă promulgação da Lei 12.605/12, que determinou Ă s instituiçÔes de ensino que expedissem "diplomas e certificados com a flexĂŁo de gĂȘnero correspondente ao sexo da pessoa diplomada". Nada de ser formada engenheiro - agora Ă© engenheira.
NĂŁo pretendo, com o perdĂŁo do trocadilho, gastar meu latim falando disso. Se a mudança veio ou nĂŁo pra ficar, sĂł o tempo irĂĄ dizer. Sua crĂtica central Ă© a adoção do gĂȘnero masculino como o mais genĂ©rico, aquele capaz de abranger homens e mulheres em algumas situaçÔes. Mas de onde vem isso? Muita gente tem dado explicaçÔes que vĂŁo dar no latim. O problema Ă© que sĂŁo explicaçÔes mal informadas que nĂŁo ajudam muito a discussĂŁo. Ă o que pretendo esclarecer na publicação de hoje.

Como era em latim.
VocĂȘ muito provavelmente jĂĄ ouviu, em algum podcast ou entrevista, que o latim tinha trĂȘs gĂȘneros: o masculino, o feminino e o neutro. Na passagem para o portuguĂȘs, o neutro se fundiu ao masculino e fez dele o gĂȘnero mais abrangente em portuguĂȘs. Por isso o masculino, alĂ©m de masculino, seria tambĂ©m o gĂȘnero neutro em lĂngua portuguesa.
A explicação estĂĄ parcialmente correta. Parcialmente pois faz uma leitura errada do que era o gĂȘnero neutro no latim clĂĄssico. De fato, o neutro via de regra se transformou no masculino na passagem para as lĂnguas neolatinas (e.g. Maurer Jr., §34, 1959, p. 78ss); qualquer aluno de latim com alguns meses de aula (em meu curso, jĂĄ no inĂcio do segundo mĂȘs) consegue perceber isso muito claramente ao comparar o acusativo singular de palavras masculinas e neutras da segunda declinação, por exemplo "lupum [masculina: lobo]" e "aurum [neutra: ouro]". Percebeu a terminação "-um" em ambos? Pois Ă©: a confusĂŁo estĂĄ praticamente dada! Do mesmo modo, alguns neutros plurais passaram para o feminino, fruto de uma confusĂŁo, agora, com a primeira declinação: compare "arma", neutro plural que darĂĄ "arma" em portuguĂȘs, com "aqua", feminino singular.
O problema Ă© que essa explicação passa ao largo de duas coisas. Em primeiro lugar, nĂŁo Ă© correto dizer que o gĂȘnero neutro no latim antigo desapareceu completamente do mapa, afinal de contas nĂłs, falantes de lĂngua portuguesa, temos sim resquĂcios dele nos pronomes demonstrativos: isto, isso e aquilo. Em segundo, esse tal gĂȘnero neutro antigo nada tinha a ver com a linguagem inclusiva de hoje em dia. Na verdade, o neutro em latim era usado para designar principalmente objetos inanimados, por exemplo frutos e metais, mas tambĂ©m trechos do discurso e mesmo formas verbais como o infinitivo. Alguns linguistas trabalham com a hipĂłtese de que, num primeiro momento, a lĂngua que teria dado origem ao latim, o chamado indoeuropeu, tinha um gĂȘnero para seres vivos e outro para objetos inanimados. Ă o que diz Ernesto Faria (1995, p. 65-66) ao explicar que "a causa determinante de diferenciação dos gĂȘneros na antiga lĂngua indoeuropeia nĂŁo foi, em absoluto, a diferença dos sexos, mas a oposição entre os seres animados e os seres inanimados ou coisas".
Trocando em miĂșdos, quando um romano precisava se dirigir a homens e mulheres, ele nĂŁo usava o neutro, da mesma forma como nĂłs nĂŁo apontamos para um grupo de pessoas e dizemos: aquilo. Isso significaria tratar seres humanos como coisas, o que Ă© inadmissĂvel. Em situaçÔes assim, quando os seres eram vivos e sexuados, entĂŁo o latim empregava o masculino (cf. Allen e Greenough, §287.2, 2006, p. 172): "uxor [f.] deinde ac liberi [m.] amplexi" (LĂvio 2.40: depois, a esposa e os filhos, abraçados). Note que Ă© "amplexi", masculino plural, quem retoma "uxor" e "liberi", e nĂŁo "amplexae", feminino plural. AlĂ©m disso, embora LĂvio nĂŁo especifique o sexo dos filhos de Coriolano na passagem, o termo "liberi", outro masculino plural, podia abranger por si sĂł os dois sexos, como em "non est sine liberis [m. pl], cui vel unus filius [m.] unave filia [f.] est" (Digesto 50.16.148: nĂŁo estĂĄ sem filhos quem tem um filho ou uma filha). Outro bom exemplo de masculino genĂ©rico em latim Ă© quando o possessivo "meus" significa "meus parentes, amigos, afins, conhecidos etc". Isso sĂł Ă© possĂvel no plural masculino, como em: "nam ego meorum solus sum meus" (TerĂȘncio, FormiĂŁo 587: pois eu, dentre os meus [m. pl.], sou o Ășnico [que Ă©] meu).
Para Grevile Corbett (1991, p. 287-288), isso significa dizer que o latim mesclava critĂ©rios sintĂĄticos e semĂąnticos para a determinação de gĂȘnero ("gender resolution"). SintĂĄticos pois envolve a escolha de um dos gĂȘneros disponĂveis no idioma, e semĂąnticos pois isso ocorria em atenção ao fato de serem seres animados ou nĂŁo. Outras lĂnguas empregam apenas critĂ©rios sintĂĄticos, como Ă© o caso de muitas neolatinas que perderam o neutro no meio do caminho (dentre elas, Ă© claro, o portuguĂȘs), mas existem algumas tantas que tambĂ©m empregam critĂ©rios semĂąnticos tĂŁo somente, cunhando, para tanto, um gĂȘnero gramatical para todos os seres racionais.
Infelizmente, Corbett nĂŁo investiga outras lĂnguas indoeuropeias antigas. NĂŁo me espantaria, porĂ©m, se um estudo sobre o tema revelasse o mesmo parĂąmetro de determinação de gĂȘnero, isto Ă©, descobrisse que essas lĂnguas de um modo geral escolhem o masculino para mencionar pessoas de ambos os sexos. De todo modo, o importante Ă© perceber que estamos diante de um parĂąmetro linguĂstico ainda mais profundo do que se imagina, ou seja, o uso do masculino para se referir a homens e mulheres nĂŁo Ă© coisa da passagem do latim para o portuguĂȘs, mas, na verdade, algo que o prĂłprio latim jĂĄ exibia.
A atribuição de gĂȘnero.
A atribuição de um gĂȘnero gramatical Ă s palavras nĂŁo parece obedecer a critĂ©rios estritamente biolĂłgicos. Mesmo em latim, que contava com um gĂȘnero gramatical para designar coisas, ainda assim encontramos palavras como "mensa" (mesa) ou "aqua" (ĂĄgua) no gĂȘnero feminino e nĂŁo no neutro. Em outros casos, o que motiva a atribuição de um gĂȘnero Ă© exclusivamente a derivação morfolĂłgica, a exemplo de quando sufixos como "-ia, -itia, -itas, -tudo" criavam substantivos femininos a partir de adjetivos (e.g.: "audax > audacia, laetus > laetitia, dignus > dignitas, fortis > fortitudo"). Detalhes assim levaram Joaquim Mattoso (2019, p. 133-136) a comentar, sobre o portuguĂȘs, mas com aplicaçÔes extensĂveis ao latim, que "o gĂȘnero Ă© uma distribuição em classes mĂłrficas para os nomes", sem muita relação com o sexo dos seres.
Se Ă© um exagero achar que a atribuição de um gĂȘnero gramatical se dĂĄ sempre em atenção ao sexo, seria tambĂ©m um exagero dar a entender que nĂŁo hĂĄ nenhuma relação entre as duas coisas. AugustĂn Guerreira (2009, p. 87-89) observa, muito adequadamente, que "em latim, como em outras lĂnguas indoeuropeias, o gĂȘnero Ă© um sistema de classificação dos nomes que adotou em alguns casos critĂ©rios semĂąnticos e em outros sua gramaticalização como categoria que evoluiu para um sistema complexo no qual se observam, com maior ou menor clareza, esquemas jĂĄ plenamente formalizados". Significa dizer que existem, pelo menos em alguns casos especĂficos, motivaçÔes semĂąnticas inegĂĄveis para a atribuição de um gĂȘnero gramatical. Um bom exemplo Ă© o de substantivos tais como "poeta, nauta e agricola", todos masculinos. Embora pertençam a uma declinação cuja esmagadora maioria Ă© composta de palavras femininas, essas palavras sĂł recebem o gĂȘnero masculino pois, como explica Ernesto Faria (1995, p. 75), designam "em geral nomes de homem, ou de profissĂ”es exercidas geralmente por homens". Se a atribuição de gĂȘnero fosse aleatĂłria, entĂŁo o esperado seria que essas palavras tivessem gĂȘnero feminino pela comodidade da declinação morfolĂłgica.
Os antigos estavam jĂĄ atentos a essa situação. Nas palavras de Tom Hendrickson, "Ă© evidente que os gregos e os romanos viam o gĂȘnero gramatical como um conglomerado amorfo de caracterĂsticas e tendĂȘncias relacionadas, mas nĂŁo inteiramente definidas, pelo sexo biolĂłgico". Um exemplo para ilustrar. O gramĂĄtico antigo VarrĂŁo dizia que "o macho e a fĂȘmea tĂȘm certa associação entre si por natureza, mas nenhuma associação Ă© feita entre eles e a natureza neutra, pois sĂŁo diversos" (Sobre a lĂngua latina, 9.59, trad. Giovanna Valenza, 2010, p. 86). Isso confirma nosso comentĂĄrio de que o neutro nĂŁo tinha nada a ver com uma espĂ©cie de lĂngua inclusiva em estĂĄgio larval. O que VarrĂŁo estĂĄ fazendo aqui Ă© responder a quem dizia que, por existirem trĂȘs gĂȘneros em latim, entĂŁo todas as palavras deveriam ter formas nesses trĂȘs gĂȘneros. Por isso, um pouco antes (9.56, 2010, p. 85), ele comenta que, "embora subsista uma coisa da natureza para toda oração, as palavras nĂŁo alcançam o propĂłsito se ela nĂŁo alcançar o uso". Um dos exemplos que dĂĄ Ă© "columbae", pombas, uma palavra que antigamente tinha um Ășnico gĂȘnero por se referir a animais que nĂŁo eram domesticadas atĂ© entĂŁo. Como, porĂ©m, no tempo de VarrĂŁo elas passaram a ser, entĂŁo, por força do uso, se criou "columbus" para o macho e "columba" para a fĂȘmea.
Veja, portanto, que, para VarrĂŁo, os gĂȘneros gramaticais sĂŁo atribuĂdos a partir do uso. Esse fio da meada Ă© depois retomado por um gramĂĄtico do perĂodo tardio, SĂ©rgio, para quem, embora sĂł existissem o masculino e o feminino como gĂȘneros de direito, naturais, era possĂvel que as palavras adquirissem um a partir do costume: "cetera vero, quae generare aut generari non possunt, non habent certa genera a natura, sed ab auctoritate suscipiunt" (GL 1.493: as demais, na verdade, que nĂŁo podem gerar ou ser geradas, nĂŁo tĂȘm gĂȘneros determinados a partir da natureza, mas, antes, tomam a partir do costume). Isso o leva a postular a existĂȘncia nĂŁo apenas de gĂȘneros neutros (literalmente, nenhum dos dois: nem masculino, nem feminino), mas tambĂ©m de gĂȘneros comuns (palavras de ambos os gĂȘneros, como "sacerdos [o sacerdote ou a sacerdotisa]") e epicenos (palavras de um sĂł gĂȘnero que, para falar do sexo oposto, precisam de adjetivos como "mas [macho] ou femina [fĂȘmea]"). Seu teste Ă© no mĂnimo curioso: "ubi visu discernimus sexum, commune est; ubi visu non discernimus, epicoenon est" (GL 1.494: quando discernimos o sexo pela visĂŁo, Ă© comum; quando nĂŁo discernimos, Ă© epiceno).
Nada disso estĂĄ muito distante de quando gramĂĄticas tradicionais como a de Silveira Bueno (1944, p. 180 e seguintes) falavam de substantivos epicenos e comuns de dois, bem como de substantivos masculinos ou femininos pela significação. Em casos assim, percebemos que o espectro de gĂȘnero gramatical era amplo e aceitava atribuiçÔes motivadas nĂŁo apenas pelo sexo visĂvel, como tambĂ©m "ab auctoritate", pela autoridade ou pelo costume. Para AugustĂn Guerrera, gĂȘneros comuns ou epicenos mostram um conflito entre um sistema de atribuição de gĂȘnero semĂąntico e outro meramente formal, que, em Ășltima instĂąncia, irĂĄ impactar tambĂ©m na concordĂąncia: "o aspecto formal e universal da categoria [de gĂȘnero ou nĂșmero] nĂŁo se adapta de forma absoluta a todos os substantivos e, no entanto, todos a postulam ainda que de forma prototĂpica" (2009, p. 102). Ă quando um substantivo plural pode concordar com um verbo singular, ou quando um masculino pode retomar homens e mulheres.
ReferĂȘncias
Allen; Greenough. New Latin Grammar, ed. Dover, 2006.
Bechara, Evanildo. Moderna gramĂĄtica portuguesa, ed. Lucerna, 2001.
Bueno, Silveira. GramĂĄtica normativa da lĂngua portuguesa, ed. Saraiva, 1994.
Camara Jr., Joaquim Mattoso. Estrutura da lĂngua portuguesa, ed. Vozes, 2019.
Corbett, Grevile. Gender, ed. Cambridge, 1991.
Faria, Ernesto. GramĂĄtica da lĂngua latina, ed. FAE, 1995.
Guerreira, AugustĂn Ramos. "Las categorĂas de gĂ©nero, nĂșmero y caso. La concordancia", em SintĂĄxis del latĂn clĂĄsico, org. JosĂ© Miguel Baños Baños, ed. Liceus, 2009.
Hendrickson, Tom. "Gender Diversity in Greek and Latin Grammar: Ten Ancient Discussions", Medium, 30/01/20.
Maurer Jr., Theodoro Henrique. GramĂĄtica do latim vulgar, ed. Livraria AcadĂȘmica, 1959.
Santos, Marcos Paula. Sexismo linguistico e nomes gerais: a construção de uma lĂngua inclusiva. Dissertação de mestrado, UFMG, 2019.
Valenza, Giovanna Mazzaro. De lingva latina, de Marco TerĂȘncio VarrĂŁo: tradução dos livros VIII, IX e X. Dissertação de mestrado, UFPR, 2010.
Weiss, Michael. Outline of the Historical and Comparative Grammar of Latin, ed. Beech Stave, 2009.