A grande pauta do momento é a proposta de criar um novo gênero gramatical para as palavras em português. Não há um consenso sobre como esse gênero deve ser; lembro de uma época em que as pessoas usavam um x ou um @, como em "alunx" e "alun@s", para conviver ao lado do nosso velho conhecido "aluno(a)", mas de uns tempos pra cá tenho visto muita gente usar um -e como em "alunes", o que parece ser pelo menos mais fácil de ser vocalizado. O termo que pegou é "linguagem neutra", mas, como bem destacado por Maria Helena de Moura Neves, trata-se de um termo equivocado: "Na verdade, esse movimento visa a inclusão social, sem discriminações, de todos os grupos da sociedade, tratando-se, pois, da proposta de uma 'linguagem inclusiva', ou 'lÃngua inclusiva', o que é extremamente louvável".
Cunhar um novo gênero gramatical é a proposta mais ousada, mas existem formas menos impactantes de desenvolver uma linguagem inclusiva que minimize ruÃdos indesejáveis. Marcos Paula Santos (2019, p. 39 e seguintes) estudou algumas em sua dissertação de mestrado, por exemplo a substituição de "homem" por "humano, pessoa, indivÃduo". Evanildo Bechara (2001, p. 134) também observou que muitas profissões passaram a criar formas femininas para acompanhar "a presença, cada vez mais justamente acentuada, da mulher nas atividades profissionais que até bem pouco eram exclusivas ou quase exclusivas do homem". É o que levou à promulgação da Lei 12.605/12, que determinou à s instituições de ensino que expedissem "diplomas e certificados com a flexão de gênero correspondente ao sexo da pessoa diplomada". Nada de ser formada engenheiro - agora é engenheira.
Não pretendo, com o perdão do trocadilho, gastar meu latim falando disso. Se a mudança veio ou não pra ficar, só o tempo irá dizer. Sua crÃtica central é a adoção do gênero masculino como o mais genérico, aquele capaz de abranger homens e mulheres em algumas situações. Mas de onde vem isso? Muita gente tem dado explicações que vão dar no latim. O problema é que são explicações mal informadas que não ajudam muito a discussão. É o que pretendo esclarecer na publicação de hoje.
Como era em latim.
Você muito provavelmente já ouviu, em algum podcast ou entrevista, que o latim tinha três gêneros: o masculino, o feminino e o neutro. Na passagem para o português, o neutro se fundiu ao masculino e fez dele o gênero mais abrangente em português. Por isso o masculino, além de masculino, seria também o gênero neutro em lÃngua portuguesa.
A explicação está parcialmente correta. Parcialmente pois faz uma leitura errada do que era o gênero neutro no latim clássico. De fato, o neutro via de regra se transformou no masculino na passagem para as lÃnguas neolatinas (e.g. Maurer Jr., §34, 1959, p. 78ss); qualquer aluno de latim com alguns meses de aula (em meu curso, já no inÃcio do segundo mês) consegue perceber isso muito claramente ao comparar o acusativo singular de palavras masculinas e neutras da segunda declinação, por exemplo "lupum [masculina: lobo]" e "aurum [neutra: ouro]". Percebeu a terminação "-um" em ambos? Pois é: a confusão está praticamente dada! Do mesmo modo, alguns neutros plurais passaram para o feminino, fruto de uma confusão, agora, com a primeira declinação: compare "arma", neutro plural que dará "arma" em português, com "aqua", feminino singular.
O problema é que essa explicação passa ao largo de duas coisas. Em primeiro lugar, não é correto dizer que o gênero neutro no latim antigo desapareceu completamente do mapa, afinal de contas nós, falantes de lÃngua portuguesa, temos sim resquÃcios dele nos pronomes demonstrativos: isto, isso e aquilo. Em segundo, esse tal gênero neutro antigo nada tinha a ver com a linguagem inclusiva de hoje em dia. Na verdade, o neutro em latim era usado para designar principalmente objetos inanimados, por exemplo frutos e metais, mas também trechos do discurso e mesmo formas verbais como o infinitivo. Alguns linguistas trabalham com a hipótese de que, num primeiro momento, a lÃngua que teria dado origem ao latim, o chamado indoeuropeu, tinha um gênero para seres vivos e outro para objetos inanimados. É o que diz Ernesto Faria (1995, p. 65-66) ao explicar que "a causa determinante de diferenciação dos gêneros na antiga lÃngua indoeuropeia não foi, em absoluto, a diferença dos sexos, mas a oposição entre os seres animados e os seres inanimados ou coisas".
Trocando em miúdos, quando um romano precisava se dirigir a homens e mulheres, ele não usava o neutro, da mesma forma como nós não apontamos para um grupo de pessoas e dizemos: aquilo. Isso significaria tratar seres humanos como coisas, o que é inadmissÃvel. Em situações assim, quando os seres eram vivos e sexuados, então o latim empregava o masculino (cf. Allen e Greenough, §287.2, 2006, p. 172): "uxor [f.] deinde ac liberi [m.] amplexi" (LÃvio 2.40: depois, a esposa e os filhos, abraçados). Note que é "amplexi", masculino plural, quem retoma "uxor" e "liberi", e não "amplexae", feminino plural. Além disso, embora LÃvio não especifique o sexo dos filhos de Coriolano na passagem, o termo "liberi", outro masculino plural, podia abranger por si só os dois sexos, como em "non est sine liberis [m. pl], cui vel unus filius [m.] unave filia [f.] est" (Digesto 50.16.148: não está sem filhos quem tem um filho ou uma filha). Outro bom exemplo de masculino genérico em latim é quando o possessivo "meus" significa "meus parentes, amigos, afins, conhecidos etc". Isso só é possÃvel no plural masculino, como em: "nam ego meorum solus sum meus" (Terêncio, Formião 587: pois eu, dentre os meus [m. pl.], sou o único [que é] meu).
Para Grevile Corbett (1991, p. 287-288), isso significa dizer que o latim mesclava critérios sintáticos e semânticos para a determinação de gênero ("gender resolution"). Sintáticos pois envolve a escolha de um dos gêneros disponÃveis no idioma, e semânticos pois isso ocorria em atenção ao fato de serem seres animados ou não. Outras lÃnguas empregam apenas critérios sintáticos, como é o caso de muitas neolatinas que perderam o neutro no meio do caminho (dentre elas, é claro, o português), mas existem algumas tantas que também empregam critérios semânticos tão somente, cunhando, para tanto, um gênero gramatical para todos os seres racionais.
Infelizmente, Corbett não investiga outras lÃnguas indoeuropeias antigas. Não me espantaria, porém, se um estudo sobre o tema revelasse o mesmo parâmetro de determinação de gênero, isto é, descobrisse que essas lÃnguas de um modo geral escolhem o masculino para mencionar pessoas de ambos os sexos. De todo modo, o importante é perceber que estamos diante de um parâmetro linguÃstico ainda mais profundo do que se imagina, ou seja, o uso do masculino para se referir a homens e mulheres não é coisa da passagem do latim para o português, mas, na verdade, algo que o próprio latim já exibia.
A atribuição de gênero.
A atribuição de um gênero gramatical à s palavras não parece obedecer a critérios estritamente biológicos. Mesmo em latim, que contava com um gênero gramatical para designar coisas, ainda assim encontramos palavras como "mensa" (mesa) ou "aqua" (água) no gênero feminino e não no neutro. Em outros casos, o que motiva a atribuição de um gênero é exclusivamente a derivação morfológica, a exemplo de quando sufixos como "-ia, -itia, -itas, -tudo" criavam substantivos femininos a partir de adjetivos (e.g.: "audax > audacia, laetus > laetitia, dignus > dignitas, fortis > fortitudo"). Detalhes assim levaram Joaquim Mattoso (2019, p. 133-136) a comentar, sobre o português, mas com aplicações extensÃveis ao latim, que "o gênero é uma distribuição em classes mórficas para os nomes", sem muita relação com o sexo dos seres.
Se é um exagero achar que a atribuição de um gênero gramatical se dá sempre em atenção ao sexo, seria também um exagero dar a entender que não há nenhuma relação entre as duas coisas. AugustÃn Guerreira (2009, p. 87-89) observa, muito adequadamente, que "em latim, como em outras lÃnguas indoeuropeias, o gênero é um sistema de classificação dos nomes que adotou em alguns casos critérios semânticos e em outros sua gramaticalização como categoria que evoluiu para um sistema complexo no qual se observam, com maior ou menor clareza, esquemas já plenamente formalizados". Significa dizer que existem, pelo menos em alguns casos especÃficos, motivações semânticas inegáveis para a atribuição de um gênero gramatical. Um bom exemplo é o de substantivos tais como "poeta, nauta e agricola", todos masculinos. Embora pertençam a uma declinação cuja esmagadora maioria é composta de palavras femininas, essas palavras só recebem o gênero masculino pois, como explica Ernesto Faria (1995, p. 75), designam "em geral nomes de homem, ou de profissões exercidas geralmente por homens". Se a atribuição de gênero fosse aleatória, então o esperado seria que essas palavras tivessem gênero feminino pela comodidade da declinação morfológica.
Os antigos estavam já atentos a essa situação. Nas palavras de Tom Hendrickson, "é evidente que os gregos e os romanos viam o gênero gramatical como um conglomerado amorfo de caracterÃsticas e tendências relacionadas, mas não inteiramente definidas, pelo sexo biológico". Um exemplo para ilustrar. O gramático antigo Varrão dizia que "o macho e a fêmea têm certa associação entre si por natureza, mas nenhuma associação é feita entre eles e a natureza neutra, pois são diversos" (Sobre a lÃngua latina, 9.59, trad. Giovanna Valenza, 2010, p. 86). Isso confirma nosso comentário de que o neutro não tinha nada a ver com uma espécie de lÃngua inclusiva em estágio larval. O que Varrão está fazendo aqui é responder a quem dizia que, por existirem três gêneros em latim, então todas as palavras deveriam ter formas nesses três gêneros. Por isso, um pouco antes (9.56, 2010, p. 85), ele comenta que, "embora subsista uma coisa da natureza para toda oração, as palavras não alcançam o propósito se ela não alcançar o uso". Um dos exemplos que dá é "columbae", pombas, uma palavra que antigamente tinha um único gênero por se referir a animais que não eram domesticadas até então. Como, porém, no tempo de Varrão elas passaram a ser, então, por força do uso, se criou "columbus" para o macho e "columba" para a fêmea.
Veja, portanto, que, para Varrão, os gêneros gramaticais são atribuÃdos a partir do uso. Esse fio da meada é depois retomado por um gramático do perÃodo tardio, Sérgio, para quem, embora só existissem o masculino e o feminino como gêneros de direito, naturais, era possÃvel que as palavras adquirissem um a partir do costume: "cetera vero, quae generare aut generari non possunt, non habent certa genera a natura, sed ab auctoritate suscipiunt" (GL 1.493: as demais, na verdade, que não podem gerar ou ser geradas, não têm gêneros determinados a partir da natureza, mas, antes, tomam a partir do costume). Isso o leva a postular a existência não apenas de gêneros neutros (literalmente, nenhum dos dois: nem masculino, nem feminino), mas também de gêneros comuns (palavras de ambos os gêneros, como "sacerdos [o sacerdote ou a sacerdotisa]") e epicenos (palavras de um só gênero que, para falar do sexo oposto, precisam de adjetivos como "mas [macho] ou femina [fêmea]"). Seu teste é no mÃnimo curioso: "ubi visu discernimus sexum, commune est; ubi visu non discernimus, epicoenon est" (GL 1.494: quando discernimos o sexo pela visão, é comum; quando não discernimos, é epiceno).
Nada disso está muito distante de quando gramáticas tradicionais como a de Silveira Bueno (1944, p. 180 e seguintes) falavam de substantivos epicenos e comuns de dois, bem como de substantivos masculinos ou femininos pela significação. Em casos assim, percebemos que o espectro de gênero gramatical era amplo e aceitava atribuições motivadas não apenas pelo sexo visÃvel, como também "ab auctoritate", pela autoridade ou pelo costume. Para AugustÃn Guerrera, gêneros comuns ou epicenos mostram um conflito entre um sistema de atribuição de gênero semântico e outro meramente formal, que, em última instância, irá impactar também na concordância: "o aspecto formal e universal da categoria [de gênero ou número] não se adapta de forma absoluta a todos os substantivos e, no entanto, todos a postulam ainda que de forma prototÃpica" (2009, p. 102). É quando um substantivo plural pode concordar com um verbo singular, ou quando um masculino pode retomar homens e mulheres.
Referências
Allen; Greenough. New Latin Grammar, ed. Dover, 2006.
Bechara, Evanildo. Moderna gramática portuguesa, ed. Lucerna, 2001.
Bueno, Silveira. Gramática normativa da lÃngua portuguesa, ed. Saraiva, 1994.
Camara Jr., Joaquim Mattoso. Estrutura da lÃngua portuguesa, ed. Vozes, 2019.
Corbett, Grevile. Gender, ed. Cambridge, 1991.
Faria, Ernesto. Gramática da lÃngua latina, ed. FAE, 1995.
Guerreira, AugustÃn Ramos. "Las categorÃas de género, número y caso. La concordancia", em Sintáxis del latÃn clásico, org. José Miguel Baños Baños, ed. Liceus, 2009.
Hendrickson, Tom. "Gender Diversity in Greek and Latin Grammar: Ten Ancient Discussions", Medium, 30/01/20.
Maurer Jr., Theodoro Henrique. Gramática do latim vulgar, ed. Livraria Acadêmica, 1959.
Santos, Marcos Paula. Sexismo linguistico e nomes gerais: a construção de uma lÃngua inclusiva. Dissertação de mestrado, UFMG, 2019.
Valenza, Giovanna Mazzaro. De lingva latina, de Marco Terêncio Varrão: tradução dos livros VIII, IX e X. Dissertação de mestrado, UFPR, 2010.
Weiss, Michael. Outline of the Historical and Comparative Grammar of Latin, ed. Beech Stave, 2009.