Poucas ferramentas enriquecem tanto uma aula de latim como a etimologia. Quem não gosta de aprender sobre a origem das palavras em português? As pessoas gostam tanto que acabam por inventar elas mesmas uma origem maluca para alguma palavra do momento. Quando o aluno tem a oportunidade de estudar mais sobre a mãe da língua portuguesa, a sensação é de que estamos lendo uma versão fossilizada de nosso próprio idioma, recheada de surpresas a cada página.

Leni Ribeiro e Iana Cordeiro (2017) certa feita defenderam a ideia muito interessante de que o ensino de latim, com doses generosas de etimologia, pode servir como uma ferramenta para enriquecer o vocabulário dos alunos. Embora a relação entre essas línguas mãe e filha acabe se empobrecendo muito nas mãos de quem trata o latim como uma espécie de pedra-pomes que aguça o domínio do aluno sobre a norma-padrão, com etimologia a situação é um pouco distinta, a começar pelo fato de que ela nos permite expandir o vocabulário de forma consciente e embasada. Para as autoras, o latim poderia então "despertar a curiosidade e a reflexão sobre a permanência latina no vocabulário do português e incentivar os alunos a observarem as palavras que usam ou com as quais têm contato de forma mais crítica", o que só pode ocorrer a partir de um "embasamento etimológico para aprimoramento do próprio vocabulário".
A proposta é muito interessante e acredito que todo professor de latim já deve ter percebido o quão poderosa ela é na prática. Cabe, porém, tomar alguns cuidados. Mário Eduardo Viaro tem toda razão ao rotular como infeliz a "tentativa de unir Etimologia e diversão" (2011, p. 97). A alegria de descobrir um elo perdido entre o português e o latim pode, com toda facilidade do mundo, acabar na ilusão de que todo latim que se pareça demais com português é, precisamente, a origem daquilo em português. Nós professores de latim precisamos estimular ao mesmo tempo que refrear o impulso do aluno, sempre lembrando que a pesquisa etimológica envolve um amplo conhecimento por exemplo dos metaplasmos mais comuns do latim vulgar ou mesmo uma boa metodologia de pesquisa em fontes. Tudo isso para, no fim do dia, chegarmos a uma proposta etimológica que é somente uma aproximação mais ou menos embasada e convincente: "perante argumentos válidos para a Etimologia, não podemos ter certeza se um étimo proposto está ou não correto" (2011, p. 310).
Brincar de etimólogo, em síntese, pode ser tão temerário quanto brincar de linguista, biólogo ou astrônomo. Para retomar um alerta conciso de Marcos Bagno, é ciência e não passatempo. Em primeiro lugar, existe uma diferença significativa entre dizer que uma palavra vem do latim e que seu étimo ou origem está no latim. Uma palavra que de fato tenha se originado no latim pode muito bem chegar em português não através diretamente do latim e sim de outro idioma moderno: "muitas palavras 'latinas' são, rigorosamente falando, introduzidas na língua portuguesa via inglês, ou, então, foram criadas em alemão, mas passadas para o português por meio de outra língua românica (sobretudo francês, espanhol ou italiano)" (Viaro, 2011, p. 106).
Isso dá um nó na cabeça, mas é uma ideia muito simples. Basta pensar num verbo como "deletar". O estudante do latim acha o máximo quando descobre que ele viria de "deletum", supino do verbo "deleo", destruir. Mas será mesmo que a palavra veio até nós a partir do português? Não parece. Ela vem, na verdade, do inglês da informática. "Deletar" é um aportuguesamento da tecla "delete", que apertamos quando queremos apagar uma mensagem qualquer. O latim serviria como uma fonte mais remota do verbo, ele dá as caras depois que puxamos demais o fio da meada e chegamos a um ancestral mais antigo. Uma pesquisa etimológica séria, porém, não pode simplesmente chutar a bola o mais longe possível até dar nos idiomas ancestrais. Se fosse assim, então por que parar no latim "deletum" e não se aventurar mais adiante? Prisciano por exemplo acreditava que "deleo" viria de um verbo básico, "*leo", sem exemplos de uso (GLK 2.490.8 e 19; cf. Ernout e Meillet, 2001, p. 167-168). Michiel de Vaan (2008, p. 165) aponta uma origem indoeuropeia *h3eIhi-eie/o-.
Uma comparação pode ajudar. Imagine que você me pergunte onde comprei minha geladeira. Respondo, brincando: da China. Você ficará assustado e talvez até ressentido da resposta evasiva, afinal esperava que eu respondesse que comprei em alguma loja de departamento, com um bom prazo no carnê ou parcelas suaves no cartão. O que eu quis dizer, porém, é que, olhando para a parte de trás da geladeira, notei informações relatando que a geladeira foi fabricada na China: logo, sua origem mais remota é a China.
Acho que já deu para perceber onde está o problema. Quando me perguntam onde comprei minha geladeira, as pessoas estão se referindo à sua origem imediata, ou seja, à loja onde eu a adquiri. O fato de que a geladeira tenha sido fabricada na China certamente significa dizer que em algum ponto da história essa foi de fato sua origem, mas não é bem isso o que alguém, interessado em saber a origem imediata dessa geladeira (como, digamos, é o caso da Receita Federal), queira de fato saber.
Com etimologia é a mesma coisa. Um trabalho etimológico sério não poderia responder dizendo que "deletar" vem do latim "deleo", pois esta não é sua verdadeira origem em português, isto é, não foi a partir do latim que a palavra chegou a nós. Uma resposta dessas serviria se o nosso terminus a quo, ou ponto final de pesquisa, se estendesse no tempo até chegar aos domínios do Império Romano (o que não encerraria a conversa, pois, como vimos, ainda há pano pra manga, já que esse "deleo" em latim veio de algum lugar também); no entanto, mesmo nesse caso nós não poderíamos nos furtar de dar uma resposta mais precisa à pergunta sobre quando, em que condições e através de que idioma a palavra "deletar" surge no léxico do português.
Existem muitos outros problemas envolvendo etimologia que acabam colocando o pobre do latim no centro da confusão. Infelizmente há todo um maquinário nefasto de notícias falsas, a exemplo de quando, ano passado, tentaram espalhar a notícia de que o nome da vacina AstraZeneca significaria em latim "estrelas matar". Mas há também o reino daquelas etimologias birutas e fantasiosas, chamadas por Mário Viaro de etimologia popular (2011, p. 224-225). Os exemplos pululam a cada recanto da internet. Para ficar com apenas um, certa feita Carlos Heitor Cony disse que "cadáver" vinha de uma prática antiga de dizer que a carne do defunto seria dada aos vermes: "caro data vermibus". Por divertido que seja, e por mais que traga à lembrança o defunto autor de Machado de Assis, é falso: "cadáver" vem do latim "cadaver", oriundo a seu turno do verbo "cadere": "'cadaver' nominatum a 'cadendo', quia iam stare non potest" (Isidoro, Origens 11.2.34: 'cadáver' é chamado a partir de 'cair', pois não pode mais ficar em pé).
Em muitos outros casos, todavia, a etimologia requer de nós um conhecimento sistemático de como os sons e a morfologia línguas mudam, ou mesmo uma capacidade de fornecer explicações convincentes e plausíveis. Como diz Mário Viaro (2011, p. 291), "uma hipótese não comprovável nem pelos dados, nem pela consistência da comparação, nem pelos dados da História não é um étimo, mas uma opinião infundada e sequer deve ser levada em consideração". É uma ciência, sem dúvidas, mas que se assemelha pouco a uma ciência exata capaz de datar com precisão a origem das palavras. Para algumas pode até ser, especialmente se forem neologismos à maneira daqueles cunhados por Odorico Mendes para traduzir a épica antiga: dedirrósea, políssonas, arciargênteo etc. Em muitos casos, a etimologia chega mais ou menos próximo da origem, e, para outras tantas, ela simplesmente fica de mãos vazias: não tem resposta (cf. Viaro, 2011, p. 305ss). Em todo caso, o que está em jogo são as explicações formuladas por um etimólogo, que serão mais ou menos convincentes à medida que novas evidências foram trazidas a favor ou contra um étimo proposto.
Aldo Bizzocchi, um etimólogo sério, certa feita escreveu sobre como os dicionários etimológicos falham. Um de seus exemplos foi a palavra "mancebo", explicada por alguns dicionários (e.g. o de Antenor Nascentes, 1955, p. 313) como oriunda do latim "mancipium". Uma explicação, segundo o autor, pouco convincente, na medida em que "mancipium" é substantivo abstrato oriundo de "manceps" (literalmente, "aquele que toma em suas mãos"). Não só: segundo Bizzocchi, "não há nenhuma ocorrência, mesmo em latim vulgar, da palavra 'mancipiu' como substantivo concreto, designando pessoa". Por isso ele propõe um novo étimo, segundo o qual "mancebo" vem de "emancipar", que a seu turno vem de "emancipare" a partir do latim "manceps". É uma proposta convincente.
"Mancipium", em latim, realmente é tomar pela mão: um composto de "manus (mão) + capio (tomar)". Seria, noutras palavras, a formalização de uma compra, mais ou menos como nossa entrega em mãos hoje em dia. Não é correto, porém, afirmar que não se usava "mancipium" como substantivo concreto. O dicionário latino Lewis & Short, acepção B de "mancipium", dá exemplos de quando a palavra designava um escravo, como em: "Edepol mancipium scelestum" (Plauto, Epídico 686: por Pólux!, escravo bandido). Tenho a vaga lembrança de ter visto um uso assim em O Eunuco de Terêncio também. Ernout e Thomas (2001, p. 381-382) comentam que "mancipium" era usado em seu sentido concreto de propriedade, servindo assim como sinônimo de "servus" tal como "mancipatus". Os autores também apontam que "mancipium" é encontrado em línguas provençais e hispânicas com o sentido de "garoto".
Veja, portanto, que a etimologia dada por exemplo por Antenor Nascentes tem seu embasamento. Outras propostas são possíveis também, por exemplo a do dicionário Houaiss de derivar "mancebo" direto de "manceps". Em um caso e em outro, resta saber como um termo originalmente aplicado a escravos´ou compradores passaria a falar de jovens rapazes. Antenor Nascentes, citando J. J. Nunes, observa que em usos antigos do idioma é possível encontrar "mancebo" ou "moço" como sinônimos de criado. A proposta de Bizzocchi, a seu turno, não precisa passar por tais problemas, uma vez que o verbo que serviria de base, "emancipare", significava em latim a retirada do poder (a "manus") do chefe de família sobre um rapaz. Sua formação é "ex + mancipare", este último verbo definido pelo dicionário Oxford como a alienação formalizada, ou seja, a aquisição de algum via "mancipium". Se girarmos mais a ronda, chegamos a "manceps + -o", e, em seguida, a "manus + capio".
Como você pode ver, a prosa é longa! Latinista nenhum tem de entrar em minúcias etimológicas assim, até porque seu objeto de estudo é o latim, digamos, do período clássico e não o latim transformado em português muitos séculos depois. Aqui, como em vários outros casos, o melhor que o professor faz é adotar uma postura cautelosa - aquele tipo de cautela de quem não sente vergonha alguma em responder com um sonoro "não sei!" para muitas das dúvidas dos alunos, ou, o que pode ser especialmente doloroso para alguns, de quem não vê problemas em reconhecer que suas horas de pesquisa apontaram para a direção errada. (Etimologia, afinal de contas, assim como tradução e crítica textual, requer de nós muito desapego...) Ao mesmo tempo, ele deve instigar na turma um gosto por uma pesquisa séria, o que significa dizer parar de tratar o latim como a varinha de condão que revelaria, em um só toque, a vida secreta de nosso vocabulário, e passar a vê-lo como uma ferramenta valiosa que pode tornar mais requintada, embasada e reveladora as nossas pesquisas.
Referências
Leite, Leni Ribeiro; Cordeiro, Iana Lima. "O latim como ferramenta de expansão do vocabulário do português", em Codex – Revista de Estudos Clássicos, vol. 5, n. 2, jul.-dez., 2017.
Ernout; Meillet. Dictionnaire Étymologique de la Langue Latine, ed. Klincksieck, 2001.
Nascentes, Antenor. Dicionário etimológico da língua portuguesa, ed. Livraria Acadêmica, 1955.
Vaan, Michiel de. Etymological Dictionary of Latin and the other Italic Languages, ed. Brill, 2008.
Viaro, Mário Eduardo. Etimologia, ed. Contexto, 2011.
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