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Como o lugar de fala pode ajudar os estudos clássicos.

Poucas ideias são debatidas de forma tão acalorada hoje em dia quanto a do lugar de fala. Em sua versão mais folclórica, lugar de fala seria dizer que se você não pertence a alguma minoria social específica, então não tem cacife pra dar pitaco sobre um assunto.


Longe de mim fechar os olhos para o fato de que muita gente trata a ideia assim mesmo. A eles o que sugiro é mais ponderação sobre os efeitos indesejáveis de suas ideias. Como observa Djamila Ribeiro (Lugar de fala, ed. eletrônica Sueli Carneiro & Pólen, 2019), uma referência sobre o assunto, se só as minorias sociais estivessem legitimadas a falar sobre sua realidade, e mais ninguém, "isso faria com que aqueles inseridos na norma hegemônica nem sequer se pensem". Ou seja, todos aqueles que estão isentos de muitas formas de discriminação por serem quem são, da cor que são, do gênero que são, vão como que terceirizar o trabalho de refletir e se sensibilizar com a realidade do outro. Dificilmente conseguiríamos avançar muito como sociedade num cenário assim. Por isso, para a autora, "é preciso cada vez mais que homens brancos cis estudem branquitude, cisgeneridade, masculinos." E não poderia ser de outro modo: são pautas importantes que precisam ser debatidas e pensadas por toda a sociedade. Justamente por isso precisamos nos informar mais sobre o tema, o que necessariamente envolve escutar com atenção o que essas minorias tem a dizer.


Um pouco antes no mesmo livro, Djamila Ribeiro comenta que "o lugar social não determina uma consciência discursiva sobre esse lugar. Porém, o lugar que ocupamos socialmente nos faz ter experiências distintas e outras perspectivas." Com a primeira afirmação, Djamila visa dar conta do fato de que muitas pessoas não têm consciência da posição social que ocupam, o que os torna isca fácil para discursos vindo de cima. É quando uma mentalidade empreendedora só falta só falta dizer que o pobre é pobre porque quer, haja vista que a vendedora de bolo de pote que viralizou semana passada, vejam só!, hoje está abrindo uma empresa depois de ter aprendido a investir na bolsa. Ao mesmo tempo, ela também nota que o lugar social ocupado por negros na sociedade é evidentemente distinto do lugar que um branco ocupa, assim como o lugar de uma mulher trans é diferente do lugar de uma mulher cisgênero.


Não deveria ser assim, mas, em uma sociedade desigual, que discrimina pessoas pela cor da pele ou por sua identidade de gênero, é o que acaba ocorrendo. E se é assim, precisamos entender o lugar social que ocupamos não para sempre ceder espaço ao outro, mas para refletirmos sobre aquilo que dizemos. A pergunta é simples: será que eu realmente entendo a dor do outro? Será que não estou dando pitaco sobre sua realidade sem conhecê-la direito? O que se quer dizer por lugar de fala é, em síntese, aquilo que Rosane Borges uma vez definiu como uma postura ética: dar ouvidos a quem tem muito a dizer sobre um assunto urgente, a quem, por viver na pele o peso da discriminação social, acaba percebendo nuances que para o restante das pessoas são inimagináveis ou no mínimo invisíveis. Falo de coisas como poder dizer seu nome social sem gerar suspeita nos olhos da atendente, usar um banheiro sem causar comoção nacional ou conseguir empregos simples - coisas infelizmente muito distantes da realidade de muitas mulheres trans.



Uma vez desfeito o equívoco de achar que o lugar de fala seria um grandessíssimo cala a boca!, a ideia se torna muito mais simpática e frutífera, inclusive para os estudos clássicos. Mesmo assim, vale a pena confrontá-la com um ceticismo saudável. De que modo a perspectiva de uma mulher ou de um negro, por exemplo, poderia ajudar a entender melhor a literatura antiga? Quando falamos de literatura clássica, pensamos em pesquisadores que sejam sensíveis a problemas textuais, ambiguidades gramaticais, alusões obscuras e questões desse tipo. Que tipo de contribuição eles poderiam dar que um homem, vá lá, branco e heterossexual não poderia dar também?


Simples: nenhuma. Como vimos, a ideia do lugar de fala não diz que só negros, mulheres ou gays podem dizer tais e tais coisas ou perceber este e aquele fenômeno. A questão aqui é essencialmente coletiva: se todos nós como sociedade nos sensibilizarmos a demandas sociais e se ouvirmos o que as minorias têm a dizer, podemos não só promover justiça como também olhar para a realidade de maneira mais minuciosa e realista. Nessa história, é mais provável (e só isso) que alguém que sinta na pele a discriminação consiga perceber nuances que muitos outros, que não convivem com aquilo, e para os quais talvez seja até mesmo inconcebível ser discriminado por esta ou aquela razão, têm dificuldade em perceber.


Quero ilustrar com alguns exemplos. Há um grupo de pesquisa importante chamado Subalternos e Populares na Antiguidade. Quando estudamos a cultura antiga, tendemos a nos prender demais à perspectiva das elites, já que parte considerável do que chegou até nós foi produzido por seus membros ou por escritores de algum modo ligados a ela. À margem dessa realidade, porém, existia todo um mundo de indivíduos marginalizados cujas vozes nós dificilmente conseguimos ouvir. Falo das vozes que aparecem por trás das listas de erros na obra de algum gramático ou do grito de desespero abafado em um relato de guerra. Sabemos que existiam e conseguimos intuir sua presença por vias indiretas, tentando entender por exemplo o que motivou aquele erro ortográfico. Mas esse é um trabalho difícil que exige boa vontade e atenção redobrada. Quem dá azo a preconceitos linguísticos e equaciona erro ortográfico e burrice, ou linguagem popular com idioma empobrecido, dificilmente consegue ouvir o que essas vozes podem nos dizer.


Ao lado do enorme tesouro da literatura antiga, felizmente também contamos com um universo de inscrições antigas. Desde comunicações oficiais da administração romana até inscrições tumulares ou obscenidades quaisquer, por exemplo um pênis encontrado nas muralhas de Adriano, essas inscrições vez ou outra nos permitem olhar de relance para a vida das pessoas comuns daquela época, além de servir de lembrete de que existiu um mundo muito mais amplo do que aquilo que chegou até nós através da literatura latina. A interpretação dessas inscrições é recheada de problemas diversos e bem cabeludos, a começar pelo fato de que elas não formam um conjunto coerente, mas, como se poderia esperar de algo que contém até mesmo órgãos sexuais desenhados num muro, um desencontro completo de informações mais ou menos como a fachada de um prédio abandonado, com seus cartazes de shows, tarólogas, cursos técnicos, animais perdidos e campanhas políticas. Seja como for, um pesquisador sensibilizado em ouvir o que minorias sociais, hoje, têm a dizer, provavelmente será um pesquisador também sensibilizado em pelo menos tentar ouvir o que minorias sociais (os subalternos e populares no título do grupo de pesquisa), ontem, tinham a dizer.


O lugar de fala pode nos ajudar também a olhar para o ensino de latim de forma mais crítica. Sempre me lembro da grande Cynthia Dammon comentando a respeito da presença de pronomes em manuais de composição latina: basicamente, pronomes masculinos em livros escritos por homens para serem ensinados por homens para alunos homens. As chances de que um aluno desses naturalize posturas sexistas são altas. Não é porque a literatura antiga chegou a nós através do olhar das elites que precisamos ensinar latim apenas a partir dessa perspectiva. Talvez para um pesquisador branco, homem, heterossexual e pertencente ele mesmo às elites, não faça tanta diferença ensinar latim num livro apenas com personagens masculinos, afinal de contas é o que o aluno irá encontrar depois de formado. Mas, entre ser o que o aluno encontra na literatura latina e o que de fato existia temos uma boa distância. Um ensino crítico de latim deve tentar construir, com o aluno, uma visão mais complexa do mundo antigo que não se pode dar ao luxo de excluir setores inteiros da sociedade só por estarem subrepresentados no que chegou até nós.


Quero ser um pouco mais enfático e argumentar que o lugar de fala é importante até mesmo para a maneira como podemos ler e especialmente traduzir literatura antiga. Um bom exemplo recente que deu o que falar foi levantado por Emily Wilson enquanto ela produzia uma tradução da Odisseia de Homero - a primeira, aliás, em inglês após séculos e dezenas de outras terem sido produzidas. Ela observou que, em contextos nos quais a linguagem homérica era relativamente neutra, muitos tradutores, homens, mas mulheres também, interpretavam de modo claramente sexista a passagem. Um exemplo muito ilustrativo está no verso 22.464 da Odisseia. Odisseu começa o acerto de contas com os pretendentes e aqueles escravos que os apoiaram. Telêmaco então menciona escravas παρά τε μνηστῆρσιν ἴαυον (que passavam a noite junto com os pretendentes).


Wilson nota que muitos tradutores empregaram termos sexistas para traduzir a passagem, por exemplo "sluts" (vadias) ou mesmo um floreado "nightly prostitutes to shame" (noturnas prostitutas em infâmia) na tradução clássica de Alexander Pope. Aqui no Brasil temos soluções mais felizes, por exemplo Odorico Mendes com "as que, nos braços / De infames tais", Frederico Lourenço com "além de dormirem com os pretendentes" e Christian Werner com "ao lado dos pretendentes dormiam". No entanto, é possível encontrar algumas que pesam a mão, a exemplo de Trajano Vieira transformando ἴαυον (dormir, passar a noite) em "fornicar com procos". Longe de querer criar uma caça às bruxas para ver quem é o machista da rodada, é de se perguntar o que levou tradutores renomados e competentes a empregarem uma linguagem sexista numa passagem assim, mas não menos importante seria notar que uma mulher, a primeira a traduzir o poema para o inglês, foi quem levantou essa bandeira.


Outro exemplo, que fala mais de perto a nós, latinistas, é Stephanie McCarter discutindo as soluções de alguns tradutores para uma passagem impactante das Metamorfoses de Ovídio, sobre quando o deus Sol violenta Leucôtoe. Estamos falando, mais especificamente, do verso, 4.233: "uicta nitore dei posita uim passa querella est" (bem ao pé da letra: uma vez colocada de lado a queixa, ela, vencida pelo esplendor do deus, suportou a violência). Uma das palavras centrais dessa passagem é o substantivo "uim", que, para McCarter, faz menção à agressão e violência sexual do trecho. Sua força é completamente diluída por Rolfe Humphries ao traduzir para "took his passion / With no complaint" (tomou sua paixão sem reclamar). Muitos outros tradutores ingleses também não darão conta do recado. Frank Miller traduz para "suffers the ardent wooing of the god" (suporta o ardente cortejo do deus), David Raeburn para "the Sun was allowed to possess her" (permitiu-se ao Sol possuí-la) e Allen Mandelbaum simplesmente o omite: "And she—unable to protest—submits" (e ela - sem poder reclamar - se sujeita). Curiosamente, uma das que melhor retratam a violência da passagem é a tradução clássica de Arthur Golding, publicada no século XVI: "And suffred him by forced powre his pleasure to fulfill" (e suportou que ele saciasse seu prazer à força).


Eu diria que o trecho é também delicado na medida em que explora sentidos do verbo "patior", nem sempre muito fácil de traduzir. Em um extremo, ele significa suportar uma situação com desconforto, mas, em outro, ele significa algo próximo de permitir. O ablativo absoluto "posita querella" pode levar alguns tradutores a achar que Leucôtoe se entregou de bom grado ao deus, mas, quando juntamos outras peças no verso, por exemplo o particípio "uicta" e a própria agressividade por trás de "uim", notamos que não o verbo "patior" parece pender muito mais para o extremo de suportar uma situação desagradável e invasiva. Nem sempre as traduções inglesas captam isso muito bem. A de A. D. Melville, embora pegue bem o espírito de "uim", falha com "patior": "With no complaint accepted his assault" (sem reclamar, aceitou o seu ataque). As traduções brasileiras também são mais enfáticas com "uim", mas acabam escorregando com o verbo. Renata Cazarini investigou algumas e encontrou "encontrou-se ao fulgor e à violência do deus" em Raimundo Carvalho, "deixou-se violentar" em David Jardim Junior e "suportou sem protestos a violência" em Domingos Lucas Dias.


Pois bem. Não acho gratuito que justamente duas mulheres tenham levantado essas questões. Seu lugar de fala certamente as sensibilizou para perceber no original nuances que muitos tradutores talvez não tenham percebido, afinal de contas o medo do estupro não faz parte do cotidiano da maioria de nós homens. Isso não significa dizer que apenas mulheres possam traduzir a passagem de forma correta: as traduções para o português de Homero, todas feitas por homens, de um modo geral se saíram bem, assim como Domingos Lucas Dias também se saiu com Ovídio. Além disso, Wilson já havia notado que mesmo uma tradução feita por uma mulher, como é o caso da francesa de Anne Dacier, no século XVII, aparece com "tous les désordres qu'elles ont commis" (todas as confusões que fizeram).


Quero fechar o texto com uma comparação. Imagine que um aficionado por artigos militares resolva traduzir a Eneida de Virgílio. Será uma tradução prosaica, sem apelo a recursos poéticos que façam o texto soar como um poema épico ou pelo menos algo bem escrito, mas uma que vai se arriscar a fazer uma coisa muitíssimo interessante: ela se esforçará em traduzir os termos militares da maneira mais precisa possível, inclusive com o auxílio de ilustrações coloridas. Para essa tradução, é simplesmente inconcebível traduzir "gladium" como espada e "telum" como dardo. Como era o formato dessa espada? Qual era o seu tamanho? Como os soldados romanos lançavam uma flecha ou uma lança pontiaguda? Ela, sei lá, perfurava ou esmagava o oponente?


Eu pelo menos gostaria de ler uma tradução dessas. Enquanto outros tradutores podiam optar por "escudo" para encaixar na métrica e extrair algum som interessante da passagem, nossa tradução hipotética precisaria se preocupar com muitas outras características físicas desse escudo. Cedo ou tarde isso a levará a levantar problemas que sequer passaram pela cabeça de outros tradutores, em grande parte pois nenhum deles era um especialista aficionado por artigos militares como nosso tradutor hipotético é. Significa dizer que, em algum momento, descobriríamos que os outros tradutores simplificaram um termo ou outro, por exemplo traduzindo "clipeus" por "escudo" e não "escudo redondo de bronze" ou coisa do tipo.


A moral da história é que o fato puro e simples de que esse tradutor tenha prestado atenção redobrada aos termos militares o fará, por assim dizer, procurar pelo em ovo. Isso potencialmente nos leva a comentários mais precisos e traduções mais exatas de termos do original, ou, ainda, a uma negociação que privilegie palavras como "gladium", que de um modo geral seriam simplificadas ou até mesmo descartadas no projeto de outros colegas. Faz parte. Toda tradução tem disso. Se pegarmos a mesma ideia e substituirmos o cuidado com o léxico militar por um cuidado a respeito de relações de poder ou discriminações diversas, é possível construir um raciocínio que defenda como o lugar de fala pode ser proveitoso aos estudos clássicos. É o que faço logo abaixo, um raciocínio que serve de resumo para o restante do texto. Certamente você perceberá que estou falando de como o lugar de fala potencialmente nos leva a isso ou aquilo. O advérbio tem razão de ser: reconheço que nem toda defesa dessa ideia é feita de forma lá muito transigente e, para todos os efeitos, pode acontecer de que a contribuição trazida não seja relevante para aquele aspecto específico do texto:


1) Prestar atenção a detalhes de um texto potencialmente nos leva a comentários e traduções de valor;

2) O lugar de fala é uma forma de prestar atenção a certos detalhes de um texto relativos por exemplo a formas diversas de discriminação social;

3) Logo, o lugar de fala potencialmente nos leva a comentários e traduções de valor sobre certos aspectos de um texto.

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