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Os problemas da gramática tradicional para o ensino de latim.

Atualizado: 10 de abr. de 2022

O título, involuntariamente polêmico, requer explicações antes que me pintem como uma figura malévola que visa despetalar de vez a última flor do Lácio. Quando falo de uma gramática tradicional, estou fazendo menção a um modo muito antigo de pensar a língua. Surge com as gramáticas escritas por eruditos do período alexandrino na Grécia, foi aperfeiçoada pelos romanos e perdura ainda hoje como um modelo hegemônico, algumas vezes inclusive tomado como sinônimo de língua. É o que acontece quando um falante comenta, todo encabulado, que não sabe português pois já não lembra o que é um verbo transitivo direto ou não faz a mínima ideia de onde colocar a bendita da crase.


O motor da gramática tradicional pensa um padrão de língua a partir dos bons usos, via de regra aqueles de escritores literários do passado. É um projeto tão forte que, segundo Francisco Eduardo Vieira, que dedicou todo um livro ao estudo da gramática tradicional (2018, p. 234), "há um feixe de traços que recobre as obras gramaticais de Dionísio, Varrão, Donato, Prisciano, Isidoro de Sevilha, Nebrija, Fernão de Oliveira, João de Barros, Reis Lobato, Soares Barbosa, Júlio Ribeiro, João Ribeiro, Maximino Maciel, Eduardo Carlos Pereira, Said Ali, Napoleão Mendes de Almeida, Rocha Lima, Gladstone Chaves de Melo, Cunha & Cintra, Bechara e mais tantos outros gramáticos distantes entre si no tempo e no espaço". Veremos que isso não justifica tratá-los como se fossem todos a mesma coisa, mas não se pode negar que o fio condutor por trás desses trabalhos é em essência o mesmo.


Uma vez padronizado esse bom uso da língua, as divergências são resolvidas basicamente através da chancela de um gramático de renome. Se uma regência verbal qualquer é posta em xeque, o critério para que ela possa ser usada com o salvo-conduto da norma-padrão não é bem o fato de se achar ou não nos clássicos, já que muito do que se acha nos clássicos não está nas diretrizes da norma-padrão. O mesmo acontece com o uso de falantes letrados: se eles falam de um jeito mas nenhum gramático leva esse uso em consideração, então a espada de fogo da norma-padrão relega esse uso ao limbo das construções erradas. Como se pode ver, o gramático, nessa história toda, acaba se tornando uma espécie de fiscal aduaneiro que decide o que entra ou não para a norma-padrão.


De um modo geral, é esse o projeto que aprendemos a valorizar como o mais importante de todos, tanto por nos fazer causar boa impressão numa entrevista de emprego, quanto pela promessa de nos apresentar à beleza sem igual dos grandes autores do passado. É esse modelo de língua que também costuma dar as caras nas salas de aula de latim. O raciocínio é convincente, reconheço: a partir do momento em que a gramática greco-romana tentava em linhas gerais o mesmo, extrair normas a partir dos grandes prosadores e dos grandes poetas de priscas eras, então, como que numa corrida olímpica em que alguém vestindo toga passa o bastão para outro trajando terno e gravata, a gramática tradicional passa a ser vista como a herdeira legítima da gramática antiga, e, como tal, a candidata mais habilitada a figurar nos currículos de latim.



O que era a gramática antiga?


Dioniso da Trácia, um gramático grego que viveu no século II a.C., define gramática como "o conhecimento do comumente dito <nas obras> dos poetas e prosadores" (1.1, trad. Chapanski, 2003, p. 21). Somente aqui aparecem duas funções essenciais da gramática tradicional: fazer gramática é colocar poetas e prosadores na lâmina de ensaio, fazer gramática é sair à caça dos usos mais frequentes em suas obras.


Alguns séculos depois, o grande professor de retórica Marco Fábio Quintiliano definirá, de forma sucinta, a gramática como "a ciência da oratória e a explicação dos poetas" (1.4.2, trad. Bassetto, 2015, p. 77). O tradutor teve bons motivos para usar "a ciência da oratória" em sua tradução, mas, para os fins deste texto, será mais elucidativo irmos ao pé da letra e ficarmos com "o conhecimento do falar corretamente", recte loquendi scientiam. Veja que, à luz desse conceito-pílula, a gramática latina teria uma abrangência bem maior que a dos trabalhos modernos: ela regularia o idioma ao mesmo tempo em que serviria como uma espécie de crítica literária com pitadas de filologia, preocupada em comentar os poetas de forma detida e em elaborar edições críticas de suas obras.


Ainda segundo Quintiliano, "a linguagem fundamenta-se num sistema, no tempo, na autoridade e no uso" (1.6.1, trad. Bassetto, 2015, p. 127). Essas quatro ferramentas, ratio, vetustas, auctoritas e consuetudo (caso você queira conhecê-las em latim mesmo), ainda hoje fazem parte da caixa básica de ferramentas de qualquer gramático. A gramática tradicional não tenta nos fornecer uma explicação lógica sobre este ou aquele assunto? Ela não se apoia na autoridade dos grandes autores do passado? Ela não recorre ao que os falantes mais cultos de um idioma têm a dizer? Pois então. Quintiliano complementa dizendo que "a analogia e às vezes também a etimologia sustentam o sistema". Imagino que todos aqui já devem ter presenciado a movimentação diurna de gramáticos arrancando apontamentos etimológicos da cartola feito um mágico que sua frio para encantar uma plateia de crianças entediadas.


O nome que se dava a esse uso modelar da língua latina era Latinitas, algo como latinidade, definida pelo autor da Retórica a Herênio como a responsável por manter "a língua pura, dela removendo todos os vícios" (4.17, trad. Fortes, 2012, p. 204). É um conceito melindroso, pois, como explicam Fábio Fortes e Julia Burghini, a Latinitas, de um lado, representava "o latim em oposição às línguas estrangeiras", servindo assim como uma forma de "identidade cultural" (aspas dos autores), e, de outro, definiam os vícios e virtudes das variações linguísticas, "contrapondo, por isso, o latim literário ao latim vulgar falado" (2021, p. 43-44). Isto é, por trás do rótulo muito bonitinho da Latinitas existia certa consciência de que variedades linguísticas existiam nesse mundão de Júpiter. O problema é que, entre existirem e serem reconhecidas, legitimadas e respeitadas enquanto tais são uns bons quinhentos. Como explica Fábio Fortes (2012, p. 212), "desvios a essa 'norma' engendravam construções variantes da língua, que poderiam representar 'vícios', se empregadas contrariamente à tradição, ou 'virtudes', se atestadas no uso dos autores canônicos, o que revelava, sem dúvida, uma relatividade da noção de norma, que era contextualmente dependente." Agora me diga você: e hoje em dia; mudou muita coisa?




A gramática antiga era uma só?


Segundo nosso amigo Quintiliano, não seria lá muito errado dizer que "uma coisa seja falar latim e outra seja falar segundo a gramática" (1.6.27, trad. Bassetto, 2015, p. 137). Que frase fantástica! Ótima pro para-choque do carro de um estudante de Letras. Quando a enquadramos de maneira devida, percebemos, ali nas entrelinhas, que o trabalho de desenhar um ideal de língua, uma Latinitas, não era ponto pacífico entre os antigos, já que algumas vezes os gramáticos defendiam um jeito de falar que não era algo lá muito natural mesmo para os falantes mais cultos do idioma. O comentário de Quintiliano surge depois de toda uma discussão sobre como usar de forma correta e sóbria a analogia, e não a ferro e fogo como queriam alguns.


É apenas um dentre tantos momentos em que a gramática antiga mostra as rachaduras de divergências entre seus autores. O mesmo Quintiliano, por exemplo, mais cedo na obra (1.4.18ss), comentava que o discurso já foi dividido de maneiras muito diferentes pelos autores: enquanto Aristóteles e Teodectes falavam só de nomes, verbos e conjunções, os estoicos por exemplo acrescentaram os artigos e as preposições. Se você sair por aí saltitando ao acaso nas várzeas da tradição gramatical antiga, encontrará um bom número de trechinhos assim, nos quais o gramático da vez elenca uma série de teorias alternativas sobre um assunto qualquer ou então se incumbe ele mesmo de mostrar quão boba é a explicação do coleguinha.


Ao lado dessas disputas de ordem mais teórica, existiam outras, digamos assim, mais práticas, a respeito de como estabelecer um padrão linguístico (cf. Matthews, 2019, p. 24). O bate boca era o mesmo. Quintiliano definia "tradição da linguagem" (consuetudo sermonis) como aquela "fundamentada no consenso dos eruditos" (1.6.45, trad. Bassetto, 2015, p. 147). Isso encerra um longo comentário no qual ele tenta mostrar que os costumes por trás do bom latim não podiam ser, evidentemente, aqueles em voga na época, exatamente como depilar-se ou beber demais nos banhos, por mais que muita gente na época andasse fazendo isso (!), não tinha como ser sinônimo de boa conduta.


A ideia pura e simples de um consenso entre eruditos já mostra por si só o quão difícil era chegar a essa padronização, afinal de contas se elencar um rol de eruditos já não era fácil e dava pano pra manga, encontrar um assunto em que todos de fato concordassem – se é que concordariam – também não. Para J. N. Adams (2007, p. 16-17), a Latinitas do latim clássico era uma espécie de ideologia, no sentido de ser uma ideia que habitava o discurso de muitos membros da elite mas que, na prática, só muito raramente encontrava uma padronização coerente empregada de forma efetiva e ampla. Por isso James Clackson (2011, p. 243), aproveitando a deixa de Adams, complementa dizendo que "falantes e escritores [antigos] visavam modelar sua fala de acordo com a norma, mas embora não existisse um consenso sobre o que fosse a Latinitas, sempre existia espaço nas extremidades para alguma variedade e discussão".




A gramática tradicional hoje é uma só?


As gramáticas antigas funcionavam na base de um ideal de expressão linguística desenhado a partir da obra dos grandes autores do passado, mas, como vimos, isso não quer dizer que os antigos tivessem uma descrição gramatical uniforme à sua disposição. E o que dizer das gramáticas de hoje?


Foi um parto difícil: escrever gramática sobre línguas vernáculas, num universo em que pensar sobre língua era basicamente pensar o latim em latim, sempre envolvia algum tipo de imitação dos trejeitos da língua mãe, o que implica dizer que o pano de fundo teórico das gramáticas modernas são as antigas. Nas palavras de Francisco Eduardo Vieira (2018, p. 92), "gramáticas do alemão, inglês, espanhol, francês, italiano, português, entre outras, podem até hoje, em linhas gerais, ser traduzidas entre si sem maiores dificuldades, por fazerem parte do mesmo processo de gramatização massiva, que criou uma rede homogênea de metalinguagem e de fazer gramatical, centrada inicialmente na Europa."


Sendo assim, se escrever gramáticas sobre línguas modernas foi um ato no mínimo inusitado no começo, essa impressão pôde ser um pouco atenuada à medida em que os autores eram bem sucedidos em sua defesa das belezas da língua nativa em comparação com o latim e o grego, empregando, para tanto, os ideais e grande parte das ferramentas da gramática antiga. Mas isso nem de longe quer dizer que a gramática tradicional seja a mesma coisa para todos os autores. Nós só temos essa impressão de haver uma espécie de Liga da Justiça do Bom Português, muito certamente sediada em algum bairro nobre do Sudeste, porque estamos acostumados ao normativismo grosseiro da mentalidade concurseira de macetes e dicas de português. Todo aquele que já se deu ao trabalho de comparar pelo menos três gramáticas escolares certamente saiu dessa experiência com os bolsos cheios de comandos divergentes sobre regência verbal, por exemplo.


Uma das principais causas para essas divergências encontradas no mundo real é saber quais as coordenadas para os bons usos da língua portuguesa. Nosso primeiro impulso é apontar para uma estante cheia de livros encadernados e dizer, de peito estufado, que o bom português está na obra dos nossos clássicos. Se olhada mais de perto, porém, a resposta não parece muito convincente. O português camoniano não é o mesmo da norma-padrão de hoje em dia, nem mesmo se seguirmos a diretriz de Dioniso da Trácia e buscarmos o "comumente dito": em Camões, por exemplo, os advérbios "onde, aonde e donde" eram usados de forma muito livre e o pronome "lhe" se referia inclusive a plurais (e.g. Os Lusíadas, 7.61.6 e 4.43.4). Podemos ir além: depois de um século de modernismo, ou, para ilustrar, de um poema como "Pronominais", de Oswald de Andrade, será mesmo que o bom português são os clássicos? (Ou os clássicos menos o modernismo – uma saída cômoda, mas nem por isso menos problemática.) Será mesmo que um editorial jornalístico ou uma dissertação de mestrado precisam se espelhar em Antônio Vieira, Camilo Castelo Branco ou Gonçalves Dias?


É muito difícil pensar uma norma-padrão que não recorra, em alguma medida, à literatura do passado. Mas será que precisamos nos reportar somente a ela? Para Marcos Bagno (2011, p. 32), "é no trabalho com os mais variados gêneros textuais – falados e escritos – que os aprendizes tomarão consciência da multiplicidade de usos possíveis da língua". Por isso, "um folheto de cartomante distribuído na rua merece ser estudado e analisado em sua constituição gramatical: seu vocabulário, suas estratégias argumentativas, seus recursos morfossintáticos, tanto quanto um editorial de uma revista de grande circulação". Exemplos recentes dessa postura mais ampla estão por exemplo na gramática de Amini Hauy, que se embasa não apenas na obra de autores modernos como Fernando Pessoa, mas também no texto da Constituição de 1988, do Código Civil e do Código Penal, em suas palavras, "o padrão ideal da língua escrita no Brasil" (2015, p. 33). Outros trabalhos, de perfil muito menos tradicional, por exemplo a Gramática Houaiss de José Carlos de Azeredo (ed. Publifolha, 2009), incluem notícias de jornal e crônicas, ao passo que a recente Gramática da norma de referência, de Carlos Alberto Faraco e Francisco Eduardo Vieira (ed. Parábola, 2022), acrescenta como ingrediente extra a descrição linguística que vem sido feita sobre o português falado por classes cultas Brasil afora.


Outra diferença importante quando vamos pensar as gramáticas tradicionais de línguas modernas como o português é não sair por aí achando que elas sempre foram rigorosamente a mesma coisa. A competição olímpica contava, felizmente, com um número maior de obstáculos para os atletas. Quem viaja no tempo e aporta na primeira metade do século XVI, época em que a gramática de João de Barros é publicada, uma das primeiras sobre nosso idioma, encontra ali um autor aplicando à língua portuguesa os mesmos casos sintáticos descritos nas gramáticas latinas: "por que (como já disse) por sermos filhos da língua latina, temos tanta conformidade com ela, que convém usarmos dos seus termos" (1540, fl. 19-21). Nada de Objeto Direto, nada de Adjunto Adnominal, nada de Agente da Passiva. Que tal um pouco de Acusativo, Genitivo e Ablativo para alegrar o seu dia?


Este será durante séculos o perfil das gramáticas escritas sobre a língua portuguesa. Dirigidas a nobres daquele tempo, eram, nos termos de João de Barros, "um modo certo e justo de falar e escrever, colheito do uso e autoridade dos barões doutos" (1540, fl. 1). Não achavam estranho aplicar à língua portuguesa categorias inteiras de análise pensadas para a língua latina, até porque essas categorias um dia foram, elas mesmas, aplicadas ao latim a partir do que primeiro foi pensado para o grego antigo. Quando bem sucedidos em mostrar que a língua se saía bem após um pente fino ao lado de sua avó, terminavam mostrando que o português era uma espécie de latim "com pouca corrupção" (Os Lusíadas, 1.33.8). O que era certamente colocava um sorrisão de orelha a orelha no nosso amigo João de Barros.


O projeto de criação de uma gramática dirigida a todos os falantes de língua portuguesa, sem depender, pelo menos tão pesadamente, do que as gramáticas greco-romanas tinham a dizer, é, na prática, um projeto relativamente recente que começa a ser desenhado na segunda metade do século XVIII e ganha força durante todo o século XIX. Nas palavras de Carlos Alberto Faraco, "as (poucas) gramáticas dos primeiros séculos da gramaticografia portuguesa eram, portanto, manuais de salão, usadas no interior das casas senhoriais pelos seus autores para apoiar seu trabalho como preceptores" (2016, p. 202). É com a consolidação de um Estado moderno e a tomada de força de um sistema educacional cada vez mais abrangente que a necessidade de se elaborar um idioma oficial, a ser adotado por todos os falantes daquela nação, se torna mais urgente. Dito por Francisco Eduardo Vieira (2018, p. 98-99), "impulsionadas pela necessidade política de alcançar certa unidade linguística, as nações europeias, ainda em formação, buscaram instituir e legitimar um padrão de língua (uma norma-padrão) para atenuar a diversidade linguística regional e social herdada da experiência feudal".




Aprenda latim para melhorar o português?


Uma das promessas mais comuns ditas por quem te importuna querendo vender um curso de latim é algo como: "aprenda latim e melhore o português!" Mas como funcionaria isso?


Acabamos de ver que a linha que conecta a gramática tradicional antiga à contemporânea é felizmente mais acidentada do que dão a entender. O impulso básico é realmente o mesmo: desenhar um padrão desejável a partir dos bons usos do idioma, o que invariavelmente significava bater na porta de Cícero tarde da noite. Vimos que, apesar desse código genético em comum, houve, há e sempre haverá espaço para muita divergência. Mas o impulso, é verdade, em linhas gerais continua o mesmo. E que fique claro: é um impulso inteiramente legítimo na medida em que tenta responder a uma demanda social urgente, a de padronizar a língua em certas esferas importantes da vida social. Nas palavras de Marcos Bagno (2011, p. 937): "por mais que nós, linguistas, rejeitemos a norma-padrão tradicional, por não corresponder às realidades de uso da língua, não podemos desprezar o fato de que, como bem simbólico, existe uma demanda social por essa 'língua certa'".


No entanto, há uma diferença conceitual importante entre nutrir um ideal para idiomas modernos e para idiomas antigos. Só no primeiro caso temos participação legítima nessa conversa, afinal de contas estamos falando daquilo que nós, falantes do idioma, efetivamente podemos usar. Com uma língua antiga, porém, o impulso que motivou os gramáticos do passado a pensarem uma Latinitas não pode e nem tem como ser o nosso ao aprendê-la. As idealizações, padronizações e expectativas que os antigos nutriam com seu idioma não é mais a nossa, assim como as nossas para com o português de hoje certamente não serão as dos falantes de séculos depois, já devidamente aclimatados em um bairro horizontal em Marte. É como se fosse uma espécie de brincadeira a que não temos direito de participar, sob pena de descaracterizá-la completamente com nossos trejeitos estranhos.


Além disso, nunca é demais lembrar, como disse Leni Ribeiro certa feita, que "para saber português é preciso nada mais do que estudar português, e basta" (2016, p. 15). É como você querer treinar matemática básica dando uma nota errada sempre que vai comprar pão. Não seria mais fácil, digamos, adquirir logo um livro de matemática básica e resolver os exercícios?


A relação de parentesco entre o português e o latim deixa de ser um ponto de partida extraordinário para falar de como as línguas mudam (e, com isso, refletir com mais clareza e mais detalhes sobre a língua mudada e a língua mudando) para, de acordo com essa visão, do pague-1-leve-2, ser uma espécie de prisão domiciliar em que o latim, coitado!, tem as pernas amarradas e se vê obrigado a encher baldes e mais baldes de curiosidades etimológicas sempre que um estudante entra para ordenhá-lo. Se por um lado é evidente que o contato com o latim nos leva a ter mais consciência sobre nosso próprio idioma, por outro, ainda com Leni Ribeiro, "ao encarar o curso de latim como necessário apenas por seu caráter histórico ou etimológico, roubamos do latim o que ele tem de mais essencial e o que seu estudo pode de fato oferecer de importante e valioso aos estudantes de Letras no Brasil atual: a cultura e a literatura de que a língua latina foi veículo por vinte séculos" (2016, p. 12).


Mesmo se partirmos do princípio que aprendendo latim, melhoramos o português, isso não justifica por que deveríamos enxertar apenas gramática tradicional e norma-padrão em nossas aulas. O latim foi uma língua falada por todo tipo de gente em todo tipo de circunstância, seja quem escrevia uma obscenidade numa parede, seja quem escrevia um poema didático sobre a natureza das coisas. Não costumamos notar isso muito bem pois o que chegou a nós de todo esse universo de práticas em latim foi... Bem, foi o que deu pra chegar. E, do que deu pra chegar, é muito comum que métodos e gramáticas se apoiem demais na obra de escritores modelares como César, Cícero e Virgílio, o trio parada dura do latim nas escolas, e acabe se esquecendo que a tradição também conseguiu nos legar obras com trejeitos quase opostos a esses.


O resultado não podia ser outro: o latim muitas vezes é descrito como uma língua bela, perfeita, harmônica, um monumento a ser estudado com uma mão na tabela de declinações e a outra erguida aos céus em louvor aos deuses do Olimpo, mais ou menos o que Napoleão Mendes de Almeida faz ao comentar sobre um "hábito da análise, o espírito da observação, a educação do raciocínio" (1978, p. 8) próprios do latim. A impressão que tenho ao ler a abertura das Tusculanas de Cícero é por aí mesmo, mas a que tenho ao ler uma carta de Sêneca, uma troca de insultos em Plauto ou um episódio de Tácito não poderiam ser mais diversas. Nas palavras de Paulo Sérgio de Vasconcellos, "o latim é uma língua como qualquer outra, que teve, porém, a grande sorte de ser veículo cultural do maior império do Ocidente" (2013, p. 13). A perfeição que enxergamos nas Geórgicas de Virgílio, além de ser um adjetivo exagerado e idealizado que não serve muito para estudar e entender o poema, é um mérito mais do poeta que da língua. O que se espera que os artistas façam é isso mesmo: empreguem de forma surpreendente os recursos disponíveis numa língua.


Se o cenário é rico, se a língua é variada e deve ser estudada em suas múltiplas realizações, então temos mais um motivo para inserir somente com muito cuidado e ponderação a norma-padrão em nossas aulas, e não de forma automática, como se fosse uma espécie de garrafa térmica que vem junto com a lancheira. O professor precisa ficar vigilante, afinal de contas é muito comum que a gramática normativa e a norma-padrão abram espaço para um contrabandeio de ideias e associações indesejáveis: quando menos se espera, os alunos já não sabem mais aprender um conteúdo sem ter uma regra como muleta ou então descontam toda a sua sanha por erros no pobre do latim vulgar.




A gramática tradicional é uma teoria como qualquer outra.


A norma-padrão costuma ser apresentada aos alunos como parâmetro de certo e errado, de modo que quem cai na bobeira de não dançar segundo sua batuta é prontamente tachado de ignorante. Por trás desse corredor polonês existe a ideia de que as ferramentas tradicionais de análise, hoje em dia basicamente aquelas listadas na Nomenclatura Gramatical Brasileira, representam a realidade pura e simples do idioma. Mas isso é, na melhor das hipóteses, um truque de mágica muito bem bolado. Como toda teoria, é claro que ela aponta para uma realidade determinada de como a língua é usada. Tudo bem que uma realidade limitada ao uso de alguns escritores abençoados pelas Musas, mas ainda assim uma teoria que aponta para o que seja encontrável na obra desses autores.


O problema é que, justamente por ser uma teoria, ela não pode ser tomada como uma explicação natural, evidente ou elementar. A gramática tradicional pensa um ideal de língua a partir de um conjunto de explicações que têm uma história muito longa e sem dúvidas respeitável, mas que nem por isso devem ser tomadas como verdadeiras já de partida. Toda teoria é apenas uma teoria, cuja existência é por definição distinta da existência de um fato linguístico qualquer. O que quero dizer com isso é que as categorias gramaticais que aprendemos na escola não existem da mesma maneira que os fatos linguísticos, assim como teorias biológicas não existem da mesma maneira que protozoários ou jacarés. Os temíveis objetos diretos e indiretos, por exemplo, são rótulos que damos a determinados fatos linguísticos. Nem sempre esses nomes existiram. Gramáticas de outrora tomavam de empréstimo palavras como acusativo ou dativo das gramáticas greco-romanas, trabalhos mais recentes irão falar de argumentos internos e, no frigir dos ovos, nada impede que você se contente em falar de um bom e velho complemento verbal.


O fato de se tratar de uma língua antiga não muda muito meu argumento. A única diferença aqui é que a tradição gramatical passa a ter uma cauda muito mais extensa, que vai dar lá nos gramáticos do passado falantes nativos do idioma. Isso não dá a nenhum deles uma autoridade mística e especial, como se tivessem, só por terem sido falantes nativos, mais cacife para tratar do assunto do que um doutorando hoje em dia. Precisamos adotar um olhar mais científico, aventureiro e explorador nessas horas. Assim como os antigos não souberam explicar muito bem o funcionamento de diversos acontecimentos da natureza, eles também não souberam explicar muitos fatos a respeito de seu próprio idioma. Isso não deve causar espanto, afinal de contas estamos falando de ciência da linguagem, em que o que realmente conta não é quão antiga e respeitável seja a barba de quem deu a explicação, e sim se a explicação consegue bater com os fatos da língua. Significa dizer que conceitos, teorias e métodos linguísticos modernos podem ser aplicados mesmo a um idioma antigo como o latim, e isso com resultados potencialmente tão surpreendentes quanto com línguas modernas. O fato de ser uma língua antiga não a blinda de ser objeto de pesquisa de ponta hoje em dia.


A resistência de alguns latinistas decorre de um impasse que, no fundo, é um desentendido. Renato Oniga comenta que "progressos feitos pela linguística moderna tiveram um efeito negativo em vez de positivo na descrição gramatical do latim" (2014, p. 2). De um lado, os linguistas revisitam e muitas vezes se contrapõem a trabalhos que ainda empregam as ferramentas de análise consolidadas pela gramática antiga, e, de outro, muitos classicistas olham com desdém para teorias linguísticas como se fossem modas do momento. Isso pode ser ilustrado a partir de um comentário infeliz de Frederico Lourenço, um grande classicista português de quem sou fã de carteirinha, sobre o porquê ter usado a terminologia tradicional em sua gramática. Em sua visão, "não é útil aplicar ao ensino e à aprendizagem do latim o último grito (seja ele qual for) no campo da terminologia gramatical". Os motivos são dois. Em primeiro lugar, "o que conta hoje como último grito será certamente substituído por outra coisa qualquer daqui a uns anos". Além disso, as grandes gramáticas de referência, por exemplo a alemã de Raphael Kühner no século XIX, adotam a terminologia tradicional (2019, p. 254-255).


Que fique claro: não há problema nenhum em se apoiar numa terminologia tradicional, até porque a gramática tradicional não está errada de cabo a rabo. Seus conceitos estão profundamente arraigados em nosso pensamento, a ponto de Francisco Eduardo Vieira (2018, p. 12) comentar que "o aparato greco-romano, perfeitamente justificável na paisagem que precedeu e envolveu sua emergência, já se encontra tão arraigado em nossa cultura linguística ocidental, que muitas vezes é naturalizado pelos linguistas da atualidade". Além disso, um olhar científico sobre a língua não significa jogar fora o que foi publicado antes, mas apenas ler de forma mais crítica e rigorosa. Por um lado, realmente significa sublinhar, repetir ou mesmo elaborar melhor muito do que foi dito séculos atrás. Mas, por outro, também significa adotar uma terminologia nova, conceitos novos, teorias novas que tentem descrever o fato linguístico de formas mais precisas. Isso não deveria causar espanto. A terminologia adotada pela infectologia também deve mudar em algumas décadas. Qual o problema? A comunidade científica dificilmente aprovaria um artigo que deixasse de trabalhar com conceitos da ordem do dia por medo de que se tornem obsoletos daqui a algum tempo. Estamos falando de uma ciência da linguagem, que precisa formular, reformular e descartar algumas explicações para descrever seu objeto de estudo.


A afirmação de que gramáticas importantes e sem dúvidas incontornáveis do século XIX, como a de Kühner, tenham usado a terminologia tradicional não serve também de salvo conduto, afinal de contas outros trabalhos recentes igualmente sérios, importantes e sem dúvidas incontornáveis daqui pra frente, tais como a sintaxe de Harm Pinkster (ed. Oxford, 2015 e 2021), empregam termos da ordem do dia, no caso de Pinkster oriundos da gramática funcional. Outros tantos trabalhos preferirão usar conceitos gerativistas ou de semântica formal, por exemplo.




Alguns problemas específicos.


1) Espelhamento às avessas de conceitos tradicionais. Patrícia Prata e Fábio Fortes (2015, p. 25-26) denunciam uma espécie de "espelhamento às avessas" muito usado no ensino do latim: "para explicar fenômenos idiossincráticos da morfossintaxe latina, recorre-se a um instrumental oriundo da gramática tradicional". Um exemplo desse espelhamento é o emprego de termos como "verbo transitivo direto e indireto" para classificar os verbos latinos. A expressão parece ser usada como se fosse uma categoria natural das línguas, a qual, por ser corriqueira em português, também deveria ser para o latim. Mas será que é assim mesmo?


O que nos leva a chamar um verbo de transitivo é sua capacidade de passar ("transire") para a voz passiva. O verbo transitivo seleciona um objeto verbal que, na mudança para a voz passiva, se transformaria em sujeito paciente de uma ação. Assim, de "Ovídio quebra a jarra" chegamos a "A jarra é quebrada por Ovídio". Veja, porém, que essa explicação, sozinha, não dá conta do recado, afinal de contas ela não explica por que uma oração como "A guerra cansou o soldado", voz ativa com objeto direto, fica estranha na passiva "O soldado foi cansado pela guerra". A coisa só piora quando chegamos ao latim e encontramos ali uma certa voz passiva impessoal, que pode ser formada a partir de qualquer verbo da língua, inclusive intransitivos, por exemplo "itur in antiquam silvam" (Eneida 6.179: vai-se a uma selva antiga), passiva impessoal de "ire", ir.


A ideia de uma transitividade ser direta e indireta não é menos problemática, já que ela se define pela presença ou não de uma preposição entre o verbo e seu complemento. Por exemplo numa frase como "recita quas ad Neronem litteras misit" (Cícero, Ver. 1.83: recite as cartas que ele enviou para Nero). O problema é: qual a pertinência de um rótulo assim, se muitos verbos que hoje chamamos de indiretos não tinham um constituinte preposicionado como complemento verbal? O mesmo verbo, por exemplo, aparece sem preposição em ""in litteris quas Neroni mittis" (Cícero, Ver. 1.80: nas cartas que você enviou para Nero). Por que falar então de objeto indireto? Para assinalar uma preposição que aparece na tradução, o "para Nero" dos dois trechos? Mas não é meio esquisito definirmos um caso do latim a partir da maneira como ele se comporta na tradução em português? As diferenças aqui parecem ser outras... (cf. Pinkster, § 4.52, 2015, p. 142).




2) Ausência de ferramentas importantes de análise. A gramática tradicional também tem o sério problema de não dar ferramentas de análise importantes para o estudante. Um caso especialmente gritante é a noção de sintagma, hoje vista como essencial para muitas teorias sintáticas recentes.


Nas gramáticas antigas, "as palavras representavam os elementos mais simples cuja combinação permite a composição de elementos complexos, isto é, as frases" (Fortes; Burghini, 2021, p. 37). A maioria delas, inclusive, não contava com partes voltadas especificamente à sintaxe, que era tratada só de forma indireta e esparsa (idem, p. 38-39). Significa dizer que entre a palavra e a oração não existia um termo intermediário para dar conta da maneira como as palavras se organizam em blocos sintáticos. É um problema sério, pois nos leva a análises complicadas e pouco intuitivas que saltam das palavras direto para as funções sintáticas. E isso para não mencionar a nomenclatura ensinada nas escolas, que, além de dar nomes muito extensos para o que poderia ser descrito de forma mais simples, às vezes chega inclusive a dar nomes diferentes para um mesmo fenômeno (cf. Kennedy 2010).


Frases envolvendo particípios, por exemplo "scandentem moenia Romanae coloniae Hannibalem laeti spectamus" (Lívio 22.14.7: alegres observamos Aníbal escalando as muralhas de uma colônia romana), podem ser muito mais fáceis de serem analisadas se o aluno souber como reparti-las em sintagmas, em especial um trecho como "[[scandentem moenia] Hannibalem]". Assim ele nota de modo claro os blocos sintáticos por trás da coisa toda, sem precisar começar sua análise já rotulando "scandentem moenia" como uma oração adjetiva reduzida de particípio. Isso pode vir depois como forma de dar nome aos bois e explicar que posição essa oração ocupa dentro do sintagma "[Hannibal X]" ou qual é sua forma verbal. Em muitos casos, porém, só a identificação do sintagma já é o suficiente para que o aluno entenda o que está se passando.




3) Descrições imprecisas de variedades linguísticas. Como a gramática tradicional se preocupa em distinguir os bons usos de uma língua, as categorias de certo e errado são usadas com muita frequência, às vezes até de forma automática. Vimos que isso é um problema conceitual sério quando pensamos em línguas antigas, isto é, línguas que não mais são as nossas. Um dos problemas mais visíveis dessa maneira de abordar a língua é que ela acarreta descrições imprecisas das variedades linguísticas.


O latim vulgar, por exemplo, passa a ser visto como uma massa homogênea de língua falada de maneira errada por falantes analfabetos, ao passo que o latim dos discursos de Cícero seria o modelo de latim de uma elite letrada. Ora: o latim estava sujeito às mesmas variações que se observam nas línguas modernas, relativas por exemplo à região, ao sexo, à idade, à classe social... São, sem dúvidas, variações difíceis de serem identificadas em se tratando de uma língua que chegou até nós com todo tipo de hematoma, fratura e mutilação possível, mas nem por isso devem sair de nossas cabeças por um instante que seja. Eu diria que, embora não tenhamos uma foto panorâmica lá muito boa para ver com clareza como eram as variedades linguísticas do latim, isso não nos impede de levá-las em consideração e, assim, ao menos frear aquelas conclusões precipitadas e exageradas feitas por quem não toma o devido cuidado de imaginar um universo muito mais amplo para além do mapa da literatura do período clássico. Justamente por isso é que não podemos cair na armadilha de achar que o latim dos oradores fosse a rigor o mesmo latim do cotidiano das elites. Era, na verdade, um tipo de latim empregado em um gênero retórico muito específico, ou seja, um latim por definição estilizado que não deve ser confundido com o que provavelmente foi o latim falado espontaneamente por Cícero. Nem mesmo no caso das cartas é possível perder isso de vista, já que elas também obedeciam a critérios retóricos de composição.


O latim vulgar sofre também de um retrato feito de forma, digamos, conveniente, basicamente elencando um rol de perdas: da morfologia de casos, deste ou daquele tempo verbal, de uma ordem de palavras flexível dentro da frase... No entanto, quando vista de perto, essa lista parece no mínimo estranha: mudanças linguísticas ocorrem quando os falantes já não encaram mais uma forma determinada como útil ou plausível de ser usada no dia a dia. Nesse caso, não é que essa forma simplesmente desapareça do mapa. Isso pode acontecer, é verdade, mas em muitos casos ela sobrevive em alguma medida e passa então a conviver com outras, que passarão a ganhar muito mais importância, ou dará ensejo ao surgimento de construções novas que irão emergir desse cenário. Ou seja, não são simplesmente "perdas", mas sim reanálises das ferramentas disponíveis em uma língua. O nome disso é gramaticalização, definida por Marcos Bagno (2011, p. 487) como "uma poderosa força de transformação da língua: assim como as erupções vulcânicas, os maremotos e os terremotos abalam e redesenham a face da terra, a gramaticalização também contribui para a extinção de 'espécies' gramaticais e, ao mesmo tempo, para o surgimento de novas."


Não acaba aí. É conveniente descrever o latim vulgar como uma forma pobre e menos expressiva de latim, já que isso bate com o preconceito de muitos trabalhos de gramática tradicional, da antiguidade até os dias de hoje, a respeito das variedades populares. Além do erro em achar que a língua falada pelo povo é menos requintada do que a língua que se encontra nos poemas passadistas de décadas atrás, há também o problema de chegar a essa conclusão de formas enviesadas. A ideia, por exemplo, de que o latim vulgar enrijeceu a ordem das palavras é na verdade um movimento mais amplo do idioma que depende até do gênero literário em questão, algo facilmente visto por qualquer estudante que compare, digamos, as tragédias de Sêneca com suas cartas. A redução do número de declinações também é facilmente atestável como uma tendência geral da língua se observarmos uma palavra como "domus", que variava entre a quarta e a segunda declinação. A bem da verdade, quem por acaso se debruçar sobre o assunto logo perceberá que a literatura especializada vive sendo revisada, e aquilo que até então era tomado como característica típica do latim vulgar, com alguns artigos passa a ser tratado como um traço muito mais presente no idioma de uma maneira geral.




Como ensinar latim além da gramática tradicional?


Paulo Sérgio de Vasconcellos reconhece a importância de um ensino do latim que se beneficie do que as pesquisas linguísticas mais recentes tenham a oferecer, mas ele mesmo aponta, com toda razão, que "estudos que aplicam instrumental teórico da linguística ao latim são de difícil acesso; encontram-se, mundo afora, em teses não publicadas, artigos em periódicos, anais em congressos e relativamente poucos livros" (2015, p. 56-57). Professor de latim não faz milagre. Se o aluno passa anos a fio no banco da escola em tese aprendendo gramática tradicional e no entanto sai de lá com um instrumental muito pobre de análise, como querer que ele vá dar conta de teorias linguísticas quentinhas, saídas do forno?


Antes de mais nada, é importante notar que as teorias linguísticas recentes nem sempre são tão cabeludas assim; em alguns casos elas inclusive simplificam lições da gramática tradicional. Se, por exemplo, o aluno retiver bem o funcionamento básico de um sintagma, fica muito mais fácil olhar para toda a sintaxe do português, que, na descrição de algumas teorias modernas, é uma estrutura que perpassa a língua toda. Prova disso são as explicações claras, divertidas e elegantes dadas por Ataliba Castilho e Vanda Maria Elias em sua Pequena gramática do português brasileiro (ed. Contexto, 2012), as quais, centradas justamente no ensino do sintagma como elemento recorrente de uma língua, conseguem ser muito mais práticas e ágeis do que a análise morfossintática tradicional. Eduardo Kennedy e Gabriel Othero (2018, p. 56-57), inclusive, observam que "quando as gramáticas normativas tradicionais omitem esse longo processo de análise sintagmática e saltam diretamente para a análise das funções sintáticas, o estudo da Sintaxe torna-se um tanto obscuro. Muitas vezes, os estudantes têm a sensação de que 'sintaxe' não passa de uma mera lista de funções que deve ser memorizada mecanicamente." É o que comentei de passagem na seção passada, ao mencionar o salto enorme de análise que a gramática tradicional faz ao não considerar o sintagma como constituinte sintático.


Além disso, vale a pena lembrar que ninguém precisa aprender as tabelas, regras e ferramentas de análise apresentadas por uma gramática, seja tradicional, seja de pendor linguístico, para aprender um novo idioma. Na verdade, como observa Mário Perini (2005, p. 32), nem mesmo para aprender português é preciso lidar com essa sistematização toda, ainda mais porque os textos gramaticais exigem, já de antemão, um domínio sólido da língua escrita para que o aluno consiga entender o que está se passando. Neste cenário, a reflexão gramatical e linguística precisa entrar em sala de aula como um elemento a mais, um acréscimo que faça o aluno ter mais consciência de sua própria língua ou da que está aprendendo. Se aprender gramática nesses moldes fosse mesmo uma condição necessária para aprender um segundo idioma, então como explicar muitas pessoas aprendendo idiomas novos sem nunca terem aberto uma gramática escolar que seja? Ou como explicar a eficácia de métodos que dão conta de ensinar até mesmo línguas antigas sem recorrer a essas sistematizações gramaticais? Repito: tratar o ensino da gramática formal como uma condição necessária para aprender um idioma é um erro; se vamos ensinar gramática formal em sala de aula, precisamos de outros motivos para que ela apareça em sala de aula.


A melhor solução neste caso é tentar fomentar no aluno um gosto por uma reflexão linguística especulativa que lhe dê meios para se envolver, raciocinar e debater seu objeto de estudo, mais do que apenas se apoderar de um conjunto de conceitos e aplicá-los a um texto qualquer. Ainda com Mário Perini (2005, p. 32), "o estudo da gramática é parte da formação científica dos alunos" e "trata da descrição, interpretação e compreensão de um aspecto do universo social que nos cerca; e, principalmente, que é um corpo de conhecimentos em constante revisão, sujeito a críticas, acréscimos e refutações". Ou, em sua definição lapidar "uma gramática, enquanto descrição de uma língua, é na verdade um conjunto de hipóteses, mais ou menos bem fundamentadas" (idem). Isso obviamente não significa ensinar esta ou aquela teoria do momento, até porque, quando falamos de ciência da linguagem, o conceito ou a formulação teórica não são necessariamente mais importantes do que as perguntas feitas para se chegar àquela nova resposta. Se ensino linguístico de latim for sinônimo de colocar os alunos para desenharem árvores sintáticas das Catilinárias de Cícero, então, hercle!, haja cartolina e haja paciência, pois nem eu, que comemoro religiosamente meu Noam Chomsky Day, me daria lá muito bem com esse modelo de ensino.


Neste cenário, é muito difícil não ensinar pelo menos alguma coisa de gramática tradicional, algumas vezes até mesmo por conveniência pura e simples, já que são assuntos que o aluno muito certamente já deve ter ouvido em sala de aula ou aos quais ele no mínimo terá um acesso muito mais facilitado. Não há problema nenhum nisso; é perfeitamente razoável apresentar essas ferramentas num primeiro momento, contanto que o professor saiba levar o aluno ele próprio a confrontá-las e testar seus limites. Ou seja, o professor pode muito bem, por comodidade, ensinar que o caso dativo é o correspondente do objeto indireto em português. Existem boas razões para tanto. O problema é quando o aluno termina dois anos de latim sem outra definição capaz de substituir essa.


Ensinar latim além da gramática tradicional não quer dizer fugir dela assim como o diabo da cruz. Ela pode servir como um bom começo de conversa, uma teoria a partir da qual o professor colocará o aluno para refletir sobre os fatos do idioma que ele está aprendendo. Mas a história não pode acabar aí. A gramática numa aula de latim deve servir como estímulo à reflexão e investigação sobre os fatos do idioma. Estou pensando em especial numa forma de gramática contextualizada, que, nas palavras de Irandé Antunes (2003, p. 97), faça o estudo da gramática ser "estimulante, desafiador, instigante, de maneira que se desfaça essa ideia errônea de que estudar a língua é, inevitavelmente, uma tarefa desinteressante, penosa e, quase sempre, adversa". Para a autora, isso só é possível se a leitura for apresentada como "uma atividade de acesso ao conhecimento produzido, ao prazer estético e, ainda, uma atividade de acesso às especificidades da escrita" (2003, p. 70).


Os desafios com que Irandé Antunes se depara são obviamente muito diferentes dos de um professor de latim, afinal de contas ela está falando do ensino de português para falantes nativos de português. Mesmo assim, é possível extrair lições valiosas para os fins de nossa discussão. A gramática, nesta visão, se voltaria ao contato com os textos, mas, em vez de se cristalizar nas teorias fixas da gramática tradicional, ou ser simplesmente um amplo terreno onde o aluno sairá à cata de exemplos de acusativos de duração ou dativos éticos, se torna um espaço para reflexão sobre como a língua funciona, sobre como ela é capaz de produzir sentidos nas mãos de oradores, poetas, comediógrafos. Um ensino contextualizado de gramática não deixa espaço para ideais ou padrões de língua que no fim das contas não nos levam a lugar algum, mas, no máximo, nos fazem permanecer com mais e mais teimosia no mesmo lugar. É com ele que podemos olhar de forma mais crítica e, se preciso, abrir mão de teorias consagradas e descrições grandiloquentes para adotar, em seu lugar, um olhar mais aventureiro, ponderado e investigativo sobre os fatos de uma língua que ainda esconde muitos mistérios para todos nós.


 

Referências

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