Matheus
Falar um latim espontâneo ou autêntico?
Uma vez que o latim é dado como morto, a possibilidade pura e simples de falar ou escrever no idioma é descartada de antemão por alguns. Já tive a oportunidade de contestar essa ideia na introdução de um texto em defesa de um latim mais lúdico. Quero, aqui, enfrentar um argumento que costuma dar as caras nessa discussão: o latim falado hoje em dia não tem como ser autêntico porque excessivamente espontâneo, e, por isso, se distancia de como era a expressão dos antigos. Um argumento que recende àquele debate, travado durante o Renascimento, entre ciceronianos e adeptos de um latim vivo.

Um dos principais expoentes do partido ciceroniano foi Lorenzo Valla, que no século XV, na Itália, deu a lume um livro intitulado Elegantiae Linguae Latina (as elegâncias da língua latina). Partindo da constatação de que o latim estava sendo muito maltratado em seu tempo ("tudo destruído, incendiado, arruinado, de modo que, com dificuldade, sobrevive a cidadela capitolina", 1.30, trad. Moniz, 2021, p. 28), Valla escreve uma verdadeira enciclopédia cujo intuito era fornecer diretrizes de bom uso a partir de escritores antigos como Cícero. Assim, para me aproveitar do exemplo dado por Keith Sidwell (2015, p. 19), Valla (2.42) explica "quatenus" como o mesmo que "in quantum" (quanto, até que ponto) e usa, como apoio, um trecho de Cícero em Sobre a amizade, 61: "videndum est quatenus amicitiae tribuendum est" (é preciso ver quanto se deve atribuir à amizade).
É um trabalho de uma erudição extraordinária, mas nem por isso isento de problemas. Como observa Sidwell (2015, p. 20), Valla passa ao largo do fato de que "quatenus" foi "forçado, no latim medieval, a executar papéis de conjunção introduzindo orações finais e até mesmo consecutivas". Noutras palavras, Valla estaria basicamente atestando a presença desta ou daquela palavra em obras antigas e, a partir daí, derivando sua norma. No entanto, como isso poderia tornar o latim mais autêntico, se estamos falando de uma língua que foi falada por milênios? O latim medieval, por exemplo, não seria autêntico? Ou o que conta como autêntico é apenas aquele latim que se parece com o dos autores clássicos - o que excluiria a possibilidade de um latim plautino ou tardio serem também autênticos a seu modo?
O ciceronianismo de Valla encontrou opositores ilustres, por exemplo Erasmo de Rotterdã em seu Diálogo ciceroniano. Encontramos ali uma sátira requintada e ácida dirigida a ciceronianos de carteirinha como Valla. Para Erasmo, o latim era uma língua que podia ser usada de forma espontânea no dia a dia. Já no primeiro capítulo de seus famosos Colloquia familiaria, ele nos ensina a como saudar alguém: "urbanitatis est, salutare obvios, aut eos, qui nos adeunt, aut quos adimus ipsi colloquendi gratia" (é cortês saudar aqueles com quem nos encontramos, ou aqueles que vão até nós, ou aqueles a quem nós mesmos vamos só pra conversar). Partindo da constatação de que os ensinamentos da gramática costumam ser amargos, Erasmo propõe um ensino de latim mais divertido: "haud scio an quicquam discitur felicius, quam quod ludendo discitur" (não sei o que se pode aprender com mais proveito, do que aprender brincando).
Erasmo é também autor de um diálogo muito curioso travado entre um leão e um urso a respeito de qual seria a pronúncia correta do latim e do grego antigo. A constatação de que, da maneira como as coisas iam, todos os animais da floresta falariam um latim ininteligível aos demais, leva os dois a traçarem diretrizes de uma norma de pronúncia a partir dos autores do passado. É o pontapé da chamada pronúncia reconstituída, que, pautada nos estudos de fonologia histórica, tenta reconstruir o que teria sido o latim falado por algumas classes sociais de séculos atrás, por exemplo as elites no fim da República. O curioso é que, com sua proposta de uma pronúncia que retornasse ao período clássico e corrigisse assim metaplasmos recorrentes na época, tais como a troca do V pelo B ("bibit" no lugar de "vivit") ou a pronúncia do C como um S ("patientia" lido /pa.si.'en.si.a/), Erasmo acaba se aproximando de Valla nem tanto pela sintaxe ou pelo léxico, e sim pela fonologia e maneira de pronunciar.
Discussões assim perpassam o meio dos latinistas a todo momento. Lembro por exemplo de Luke Ranieri comentando para Irene Regini (dos 8:10 em diante) ter ouvido muitas e muitas vezes que o latim que eles dois falavam era uma espécie de cosplay pobre e tosco, entre outras razões por nem sempre colocar o verbo no fim das orações. É um comentário intrigante, ainda mais dirigido a dois dos falantes mais exímios de latim que conheço. Novamente, os responsáveis por um comentário assim esbarram na ideia de que o latim falado hoje em dia seria menos autêntico por fatalmente se afastar do clássico. Mas por que ele seria então inautêntico, se eu, como ouvinte de latim, bem como outras tantas pessoas mundo afora, conseguimos entender tudo o que dizem? A autenticidade de um enunciado em latim não deveria ser medida por sua capacidade de transmitir mensagens entre dois conhecedores do idioma?
Isso sem contar que colocar palavras no fim de uma oração não é nem nunca foi uma regra absoluta em latim: "embora em certos autores e em certos textos os formas verbais finitas e infinitas comumente ocupem a última posição da oração, não há nenhuma restrição sintática que requeira isso" (Pinkster, §23.46, 2020, p. 1020). O fim da frase, de fato, é uma posição típica dos verbos finitos, mas ela também varia muito de autor para autor e, com o passar do tempo, foi se concentrando no meio, como hoje nas línguas neolatinas. Nada, porém, que chegue a constituir uma regra absoluta que dê a entender que o latim de quem não o ponha lá o tempo todo seja menos autêntico.
A parte do léxico também sofre alguns comentários ácidos. Quem fala latim em pleno século XXI cedo ou tarde precisará aprender a como falar internet, Youtube, bomba, jornal. Latinistas preocupados com essas questões nos darão "interretis", "TuTubum", "pyrobolum" e "merces diurna" (estas duas últimas vêm do dicionário de Jose Juan Del Col). Alguns irão questionar a própria escolha dessas palavras, indagando se é realmente necessário falarmos em "pyrobolum" ou "bomba" em vez de "telum", por exemplo, termo genérico para coisas lançáveis durante uma batalha. Outros (é o meu caso, confesso) irão achar isso tudo um tanto esquisito - "cringe", como dizem os jovens, um termo ainda sem tradução para o latim, a não ser que decidamos usar algo como "insolitus", seguindo a sugestão do dicionário Smith & Hall. Mais ou menos como querer aportuguesar "blogue" e "saite" ou dar uma de Castro Lopes com seus neologismos "ludopédio" em vez de "futebol". O problema é que mesmo latinistas realmente empenhados em treinar a fala podem achar esse tipo de vocabulário frívolo, pois, como diz Luigi Miraglia (em latim mesmo! - aos 3:40), se quiséssemos falar de McDonalds ou de Coca-Cola, bastaria falar em inglês mesmo.
Quando pulamos para a pronúncia, as coisas não mudam muito. Lembro-me por exemplo de Frederico Lourenço comentando que, ao ouvir jovens falarem em latim hoje em dia pela internet, "ainda que todos afirmem usar a pronúncia clássica, ao fim de poucos segundos percebe-se logo a nacionalidade deste moderno falante de latim. Há inevitavelmente um artificialismo num espanhol a falar latim que não existe num espanhol a falar espanhol". Escuto esse tipo de comentário o tempo todo, vindo de gente que reclama de uma vogal longa que não foi ouvida como longa o bastante, de um V que não deveria estar ali, de um T que lhes pareceu palatizado demais e por aí vamos. Nada disso deveria ser tratado como um crime de lesa-majestade, afinal de contas a pronúncia clássica é somente uma aproximação. Ela nos dá diretrizes a respeito daquilo que está de algum modo atestado na literatura antiga, mas não nos afirma de maneira enfática que este ou aquele som não existiam em alguma província romana. Além disso, a própria ideia de que, para pronunciar bem um idioma, devemos embolsar nosso acento nativo é estranha. É claro que existe um esforço mecânico em um espanhol falar latim, assim como há em um goiano como eu falar espanhol, inglês, alemão, mandarim ou qualquer idioma que não tenha "pó pô pó" embutido em sua gramática. Isso não é por si só um problema.
Há um questionamento mais sério. Paulo Sérgio de Vasconcellos (2015, p. 54-55) comentou certa feita que ensinar um "utópico 'latim vivo'" não faz sentido em se tratando de "uma língua que, em vez de viva, é um arremedo aproximativo de um latim que um dia foi falado... por que estrato e em que contexto? Sem a figura do falante nativo, sequer podemos testar a gramaticalidade (no sentido chomskiano) de enunciados que, aparentemente corretos do ponto de vista das regras aprendidas nas gramáticas, talvez jamais fossem empregados por um falante nativo". Como o que sabemos de latim depende dos textos que chegam a nós, ou seja, são um tipo de produção linguística mediado por uma série de problemas de transmissão, as conclusões a que podemos chegar são muito precárias e devem ser tratadas com cautela. Além disso, se dermos azo demais a um latim espontâneo, cedo ou tarde chegaremos num ponto em que aquilo que estamos falando não é mais latim e sim outra coisa. A preocupação de autores como Valla e Erasmo tem sua razão de ser, afinal de contas variações lexicais, sintáticas ou fonológicas só são aceitas enquanto não causarem algum tipo de ruído na comunicação. Se o falante decide pronunciar o infinitivo "amare" (amar) como /a.'ma:.ri/, isso pode levar quem está nos ouvindo a achar que você na verdade quis dizer "amari" (ser amado), forma passiva desse mesmo infinitivo.
No entanto, é de se perguntar sobre qual seria o status de um latim que recorra o tempo todo à autoridade dos antigos. Até que ponto é razoável chamar uma língua praticada assim de autêntica? O chamado neolatim, termo abrangente que engloba tudo o que tem sido produzido em latim do Renascimento pra cá, do latim de Valla ao da rádio do Vaticano, foi descrito por David Butterfield (2012, p. 309) como uma língua artificial: "em razão de sua natureza essencialmente retrospectiva e pelo desejo ardente de seus praticantes de restaurar as características típicas do latim clássico tanto quanto possível, o neolatim em geral exibe poucas discrepâncias e desvios em relação ao latim literário do período clássico. Portanto, não pode ser tomado, apesar da natureza artificialmente elaborada de sua formação, como um desenvolvimento linear natural da língua latina a partir de qualquer período da história". Noutras palavras, ele deixa de ser autêntico como língua por se aproximar mecanicamente de Cícero, tornando assim cada vez mais artificial.
A solução de muitos colegas para resolverem esse nó górdio é simplesmente cortá-lo, relegando o latim ao limbo de uma língua morta que, por não ter mais falantes nativos, não pode ser falada e ponto final. É possível formular maneiras moderadas de responder a esse impasse, por exemplo tentando conciliar um latim que seja, tanto quanto possível, mais espontâneo a partir do contato sistemático com obras antigas que leve o professor alguns trejeitos. É, na verdade, o que todos os falantes de latim hoje em dia tentam fazer. A ideia de que simplesmente se metem a falar combinando regras encontradas nas gramáticas não corresponde à realidade. Quem já sentou numa sala de aula de método comunicativo cedo ou tarde ouvirá o professor comentar que este ou aquele jeito de falar, por exemplo enxertar uma oração de "quod" após um "dixit" da vida, não é boa "latinitas".
O caminho é esse. Por não sermos mais falantes nativos de latim, já não contamos mais com uma gramática internalizada da língua. Nosso contato com a língua ocorre através de textos, o que necessariamente nos obriga a ter muito cuidado com as conclusões a que chegamos e, principalmente, com as reconstruções que praticamos. O latim falado no século XXI não é o latim falado no século I a.C. Nada disso, porém, significa dizer que não tenhamos chegado a pelo menos algumas conclusões mínimas a partir do conjunto de textos que chegou até nós. Além disso, uma vez que tiramos do latim falado o peso de ser uma reconstrução histórica excessivamente fiel, um encargo que ele nunca conseguirá cumprir a contento, nós podemos olhá-lo de forma mais generosa: é uma forma realista e abrangente de entender a língua como um organismo que um dia foi vivo. Só nos resta, nesse caso, cultivar um tipo de moderação que dose adequadamente a espontaneidade que toda comunicação falada requer com um convívio diuturno com os textos antigos. A grande premissa de quem trata o latim como uma língua viva, afinal, é essa: é vivo não só para nós hoje, mas é vivo porque nos permite um diálogo em linha direta com os autores do passado.
Referências
Butterfield, David. "Neo-Latin", em A Companion to the Latin Language, org. James Clackson, ed. Blackwell, 2011.
Moniz, Fábio Frohwein de Salles. "Um manifesto do humanismo renascentista: tradução da epístola introdutória e do proêmio do livro I das Elegantiae Linguae Latinae de Lorenzo Valla", em Translatio, n. 21, 2021.
Pinkster, Harm. Oxford Latin Syntax, vol. 2, ed. Oxford, 2021.
Sidwell, Keith. "Classical Latin - Medieval Latin - Neo Latin", em The Oxford Handbook of Neo-Latin, org. Sarah Knight e Stefan Tilg, ed. Oxford, 2015.
Vasconcellos, Paulo Sérgio de. "Ensino e pesquisa de língua e literatura latina no Brasil de hoje", em O Latim Vivo, org. Patrícia Prata e Fábio Fortes, ed. Mercado das Letras, 2015.